4. Standard de Prova e Ônus Probatório

4.1. Os Diferentes Standards de Prova das Instâncias Judiciais

Os standards de prova, também chamados de modelos de constatação ou de módulos de convicção, são os níveis de prova necessários para a formação de convicção em determinados momentos que exijam decisão do julgador, seja cautelar, seja definitiva, nas diferentes instâncias jurídicas.

Referidos instrumentos condensam os critérios de suficiência explanatória das provas necessários para que sejam atendidos os graus de convencimento respectivamente exigidos de parte do julgador, em diferentes níveis, de acordo com o momento e com a instância processuais. De forma mais completa, equivalem à qualidade e à força necessária de um conjunto probante contido em um procedimento ou em um processo que ampare a autoridade a emanar alguma decisão cabível em sua competência na respectiva instância jurídica com um patamar desejado de segurança, ou seja, com uma esperada probabilidade de certeza.

Uma vez que há instâncias jurídicas punitivas e não punitivas, seus respectivos standards probatórios diferem, sendo intuitivo perceber que o processo penal e até mesmo o processo disciplinar exigem níveis necessários de prova condenatória mais rigorosos que o processo civil lato sensu, na sua acepção mais comum das disputas cíveis que frequentemente lidam com questões meramente patrimoniais. Embora o processo civil também possua seu próprio standard de prova, obviamente a preocupação maior das fontes legal e jurisprudencial e da doutrina repousa no estabelecimento do nível de prova necessário para a formação de convicção condenatória nas instâncias públicas punitivas.

Não há dúvida de que dois valores extremamente caros e de certa forma conflitantes para qualquer instância de Direito devem ser ponderados no estabelecimento do adequado standard de prova. É necessário buscar o ponto ótimo de equilíbrio entre a imprescindível garantia de liberdade de potenciais inocentes e a também indispensável necessidade social de se combater a impunidade e de se efetivar a proteção dos bens jurídicos que a instância tutela.

A experiência de vida, bem como regras jurídico-normativas ou regras de natureza conceitual, inevitavelmente compõem parte do raciocínio probatório. E isto leva a afirmar que a conclusão da prova necessária para atender o standard probatório sempre embute uma questão de probabilidade. A certeza suficiente para um julgamento, seja em que instância for, jamais atinge o ideal de eliminar qualquer mínimo resquício de dúvida.

O mesmo interesse público que leva a enquadrar determinada conduta também impõe a necessidade de se adotar um standard de provas inferior a 100% em uma escala de probabilidade de segurança jurídica exigida para se decidir em qualquer instância. Com apoio em construções das fontes (nacionais e estrangeiras) jurisprudenciais e doutrinárias, sabe-se que 100% de certeza probatória é inatingível na lógica indutiva permeada pelo conhecimento de mundo. Afinal, inexiste no Direito, ciência naturalmente inexata, standard de certeza”, inclusive para condenação penal. A adoção de um irreal e inatingível standard de prova no extremo de 100% acarretaria a total impossibilidade de qualquer condenação e, em outras palavras, teria como consequência a necessária absolvição de qualquer acusado, independentemente de ser inocente ou culpado.

A doutrina tradicional, ao abordar o tema de standard probatório - destacadamente no processo penal, onde este conceito assume obviamente maior relevância e sensibilidade -, costuma associar a suficiência explanatória da prova a termos como “verdade” e “certeza”, em geral acompanhados de diversas adjetivações, tais como, em lista não exaustiva, “material”, “processual”, “jurídica” e “relativa”. Diante da natureza fortemente excludente e não fracionável da ideia de verdade (ou se tem a verdade ou não se tem) e da compreensão de que a lógica indutiva jamais propicia a absoluta certeza sem nenhuma parcela de infalibilidade, qualquer destas adjetivações figura como eufemismo à constatação de que o máximo que se obtém é uma alta probabilidade de a hipótese escolhida ter ocorrido. A rigor, dúvidas sempre existirão; o que não se aceita é que se condene ainda que as hipóteses de defesa suscitem dúvidas razoáveis ou que estas sejam razoavelmente prováveis.

Necessário reiterar que toda busca pela verdade se dá mediante determinado recorte da realidade, limitando o escopo ao que dela se tem como relevante à vista do fato específico que se quer provar, uma vez que é impossível conhecer, explicar e esclarecer todo universo dos fatos do mundo concreto. Ao lidar com fatos pretéritos e irrepetíveis, o processo não conta com a repetição, mas sim, no máximo, com a reconstrução que se busca ser o mais próximo possível dos fatos. Com isto, não se tem nos autos os fatos, mas sim enunciados, alegações e teses que as partes apresentam sobre os fatos, em cima dos quais o julgador fará seu técnico trabalho de inferência racional. Enfim, em lugar da inatingível verdade material, o julgador deve se satisfazer com a verdade processual, ou, em outras palavras, com a verdade que se revelou processualmente suficiente para amparar o fim da dicção do Direito, também chamada de verdade jurídica.

Os diferentes standards probatórios refletem o menor e o maior grau de probabilidade de segurança jurídica exigido para se decidir em diferentes estágios (se decisão interlocutória ou se decisão condenatória), em razão das específicas tutelas caso a caso, em cada instância. Sendo assim, já que há standards probatórios menos e mais exigentes, torna-se didático representar figurativamente a escala mencionada, em um eixo verticalizado e ordenado, com valores percentuais relativamente crescentes daquele grau de probabilidade, dentre os pontos extremos e limítrofes meramente referenciais de 0% a 100% desta probabilidade.

Na ausência de estrita definição legal para os graus de probabilidades de segurança jurídica exigidos a cada instância, a construção desta escala percentual ascendente se vale das manifestações extraídas de fontes jurisprudencial e doutrinária. Não se trata de definições fechadas, determinísticas, inquestionáveis e imunes a discussões. Os graus de probabilidade que se utilizam para indicar os standards probatórios de diferentes instâncias ou momentos processuais refletem convenções extraídas de entendimentos majoritários.

De forma geral, os critérios a serem contemplados no estabelecimento dos standards probatórios devem refletir a gravidade da repercussão da aplicação da respectiva instância jurídica e a relevância dos bens jurídicos tutelados na instância de Direito material envolvida.

O fato é que, mesmo não se dispondo de estrita definição legal, faz-se necessário estudar o tema a fim de conseguir apontar o nível abaixo do qual se reconhece que não há segurança suficiente e se declara a absolvição ou, em outras palavras opostas, é de se buscar, nas fontes, qual o nível de probabilidade aceitável para que se tenha a condenação.

Iniciando-se pelos menores graus da escala, a baixa faixa de probabilidade, inferior a 50%, abarca desde o estágio de incipiência até o estágio suficiente para justificar apenas medidas cautelares. Nesta parte da metade mais baixa do eixo vertical, aceita-se que o escalonamento pode ter como menor grau merecedor de menção quando se tem apenas uma mera suspeita acerca de um fato, suficiente tão somente para deflagrar um procedimento investigativo, à vista do grau de exigência necessário e suficiente para que o Estado já se sinta provocado em seu poder-dever investigador.

No degrau seguinte, superior ao primeiro, mas ainda abaixo de 50% de probabilidade, após terem sido coletados elementos informativos, chega-se ao x de indício de prova. É de se reconhecer que não há definição legal de qual standard probatório o Código de Processo Penal exige nos diversos dispositivos em que se refere ao indício de prova, bem como qualquer outra lei. Assim, pode-se aceitar que indício de prova comporta uma espécie de nível móvel de prova, variando desde o patamar em que se detecta perigo de demora no agir da Administração até o patamar suficiente para permitir medidas cautelares de constrição de direitos, que podem ser compreendidos na tradicional expressão de fumaça de bom direito (fumus bonis juris) comumente adotada na tradição jurídica brasileira a fim de amparar decisões de juízo perfunctório e provisório. O standard probatório para indício de prova deve ser aquilatado na escala de probabilidades em função destes dois níveis.

Já os estágios condenatórios abarcam a faixa mais alta de probabilidade, iniciada a partir de 50% na escala, em patamares que refletem diferentes graus de certeza à medida que se avança no poder punitivo de cada instância. Esta parte da metade mais alta do eixo vertical inicia-se justamente na probabilidade em torno de 50%, equivalente ao standard de prova para que se tenha decisão em processo civil lato sensu, como nas disputas cíveis de natureza patrimonial, em que se admite como nível suficiente a preponderância de evidência (ou de prova), também chamado de probabilidade prevalente, seja para dar razão ao autor, seja para condenar o réu.

Uma outra forma de aquilatar este modelo de constatação é considerar que sua satisfação depende de as partes gerarem no julgador um convencimento de mera verossimilhança, como o menor grau de convicção a se aceitar como justificador de uma condenação. Obviamente, esta indicação qualitativa de 50% é meramente referencial, pois, dependendo da tutela encartada em cada processo civil (e há uma imensa gama de direitos de diferentes graus de relevância individual e social que podem ser objeto de controvérsia), pode-se exigir uma intensidade probatória mais elevada.

No patamar acima, vem o standard de prova para fim de condenação civil por ato que também possa acarretar repercussão penal ou que trate de bem jurídico de elevada envergadura, como é o caso emblemático de processo civil de improbidade administrativa, que exige a existência de evidência (ou prova) clara e convincente contra o acusado. Aqui, diante da maior gravosidade da lide, mais que se contentar com mera preponderância de prova a favor de uma das partes, a condenação requer um patamar de convencimento mais forte, em que o erro da condenação do inocente não se equipara ao erro da absolvição do culpado, como o standard probatório das questões civis patrimoniais admite. Uma outra forma de aquilatar este modelo de constatação é considerar que sua satisfação depende de as partes gerarem no julgador um convencimento fidedigno, como um grau intermediário de convicção justificador de uma condenação.

Por fim, como não poderia ser diferente, o mais alto grau de standard de prova se associa, obviamente, ao processo penal, pois, em razão dos bens jurídicos tutelados, aceita-se que a condenação criminal requer que haja no processo evidência (ou prova) além de qualquer dúvida razoável contra o réu, para todos os elementos necessários do tipo. Diante da possibilidade de pena de restrição de liberdade, busca-se um alto padrão de exigência probatória, a fim de diminuir o risco de condenação de um inocente. Não obstante, relembre-se que nem mesmo o standard de prova exigido para a condenação penal - o mais severo de todos - exige 100% da escala de probabilidade, já que não existe juízo de certeza, devendo figurar abaixo deste limite inatingível. Ainda que se reconheça que verdade e certeza absolutas são inalcançáveis, este padrão, ao considerar a dúvida razoável, contempla a segurança significativa para condenar. Uma outra forma de aquilatar este modelo de constatação é considerar que sua satisfação depende de as partes gerarem no julgador um convencimento pleno ou absoluto, como o maior grau de convicção a se exigir como justificador de uma condenação.

Apenas a título de referência, informe-se que este standard de prova é aceito em relevantes Cortes internacionais, dentre as quais se destaca o Tribunal Penal Internacional, conforme o item 3 do art. 66 do Estatuto de Roma, promulgado internamente pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Ademais, no Direito pátrio, embora não expresso de forma literal, esse modelo de constatação é compatível com o CPP, em que os incisos VI e VII do art. 386 determinam a absolvição, respectivamente, diante de fundada dúvida sobre circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou diante de inexistência de prova suficiente para condenação. Se é certo que não se pode dizer que o standard probatório possui definição expressa na lei processual penal, igualmente também não é errado observar que o CPP consagra o comando de que o grau de suficiência probatória, uma vez estabelecido nas demais fontes, deve ser acatado. E a jurisprudência também faz refletir este comando.

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional - Promulgada pelo Decreto nº 4.388, de 2002 - Art. 66.
Presunção de Inocência
1. Toda a pessoa se presume inocente até prova da sua culpa perante o Tribunal, de acordo com o direito aplicável.
3. Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável.
CPP - Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;
VII - não existir prova suficiente para a condenação.
STF, Ação Penal nº 470/MG, Plenário, Ministro Relator Joaquim Barbosa, DJe: 22/04/12, voto do Ministro Luiz Fux: “O critério de que a condenação tenha que provir de uma convicção formada para ‘além da dúvida razoável’ não impõe que qualquer mínima ou remota possibilidade aventada pelo acusado já impeça que se chegue a um juízo condenatório. Toda vez que as dúvidas que surjam das alegações de defesa e das provas favoráveis à versão dos acusados não forem razoáveis, não forem críveis diante das demais provas, pode haver condenação. Lembremos que a presunção de não culpabilidade não transforma o critério da ‘dúvida razoável’ em ‘certeza absoluta’.”
STF, Ação Penal nº 470/MG, Plenário, Ministro Relator Joaquim Barbosa, DJe: 22/04/12, voto da Ministra Rosa Weber: “ Certamente, o conjunto probatório, quer formado por provas diretas ou indiretas, ou quer exclusivamente por provas diretas ou exclusivamente por provas indiretas, deve ser robusto o suficiente para alcançar o standard de prova próprio do processo penal, de que a responsabilidade criminal deve ser aprovada, na feliz fórmula anglo-saxã, acima de qualquer dúvida razoável. Nesse cenário, caberá ao magistrado criminal confrontar as versões de acusação e defesa e com o contexto probatório, verificando se são verossímeis as alegações de parte a parte diante do cotejo com a prova colhida. Ao Ministério Público caberá avançar nas provas ao ponto ótimo em que o conjunto probatório seja suficiente para levar a Corte a uma conclusão intensa o bastante para que não haja dúvida, ou que essa seja reduzida um patamar baixo no qual a versão defensiva seja ‘irrazoável’, inacreditável inverossímel.”

A gravura abaixo visa a sintetizar e ilustrar escala ascendente de graus de probabilidades de segurança jurídica exigidos a cada instância, expressos percentuais.

À vista do exposto, como não poderia ser diferente, a melhor formulação para standard de prova advém da instância processual penal, que é da exigência da prova (ou evidência) para além de qualquer dúvida razoável e que historicamente se vincula ao desenvolvimento da presunção de inocência, segunda a qual o ônus da prova da culpa cabe à acusação e não ao réu ter de comprovar sua inocência.

A rotulagem acima apresentada dos standards de provas não deve ser vista como um engessamento artificialmente simplista de uma realidade que se perfaz de uma imensa gama de diferenciações e de individualizações caso a caso, a exemplo de complexidade probatória, gravidade das sanções previstas e diferença de impacto de uma decisão errada para uma parte e para a outra. Há, caso a caso, uma margem de maleabilidade na forma como se vislumbra que o resultado do processo, enfim, satisfaz aos comandos e princípios do Direito material que rege a questão. Em outras palavras, o standard de prova pode ter de sofrer o sacrifício de pontual e liminarmente se adequar às peculiaridades de cada caso concreto.