4.3. O Standard de Prova do Processo Disciplinar Após a apresentação da questão do standard probatório para as instâncias processuais civil em sentido amplo, civil em especial para improbidade administrativa e penal, é indispensável enfrentar o desafio de se esboçar uma abordagem de como este instituto pode ser compreendido na processualística disciplinar. É de se reconhecer que qualquer esforço aqui dedicado não passa de uma tentativa incipiente, porque o tema do módulo de convicção adequado ao processo disciplinar, além de jamais ter sido objeto de atenção de parte do legislador, tampouco foi discutido de forma aprofundada e sistematizada por outros atores competentes, a começar pelo Poder Judiciário e, por fim, pela doutrina especializada. Se não se conta com expressa previsão legal codificada e nem sequer com vastas e pacíficas manifestações jurisprudenciais e doutrinárias acerca deste tema para aquelas instâncias judiciais mais tradicionais, menos ainda se pode cogitar de a instância disciplinar já ter sido objeto de dedicação daquelas fontes para estabelecer os balizamentos de seu próprio módulo de convicção. Ora, na ausência de estudos específicos, é razoável iniciar a abordagem da questão tomando como referências iniciais os standards probatórios atribuídos à instância processual civil na especificidade da improbidade administrativa, da exigência da prova clara e convincente, e à instância processual penal, da exigência da prova além de qualquer dúvida razoável. Ainda que de forma empírica e incipiente, soa fortemente defensável concentrar o início do enfrentamento do tema limitando a discussão ao espectro situado entre estes dois módulos de convicção. Não é necessário esforço para, de antemão, descartar o standard probatório da instância processual civil lato sensu, da preponderância de evidência, aprioristicamente aqui afirmado como baixo demais para servir de parâmetro explanatório de uma processualística associada a uma instância de Direito público sancionador. Uma vez firmado este balizamento inicial, vale de imediato traçar um paralelo com a instância processual penal e, consequentemente, atrair o Direito Penal, por ser aquela, sem sombra de dúvida, a processualística contemplada com maiores teores de atenção da fonte jurisprudencial e da doutrina acerca de standard probatório, visto a maior gravosidade embutida em suas decisões. Mas, não obstante, não se deve confundir as responsabilizações administrativa e penal. Não se pode perder de vista que, no âmbito da Administração Pública e no que tange a conduta de servidores, o Direito Administrativo Disciplinar é a instância que tem de primeiramente intervir, de forma prioritária. Não cabe a tendência de tentar transferir, de forma integral, inquestionável e intransigente, todas as fortes amarras e cautelas penais para a instância disciplinar. Sem prejuízo da óbvia preocupação que o aplicador do Direito Administrativo Disciplinar deve ter com todas as prerrogativas de defesa estabelecidas no texto constitucional, não é necessário e nem mesmo pertinente ampliar para esta esfera a integralidade dos requisitos, direitos e garantias exigidos da instância penal e não previstos na Lei Estatutária. A responsabilidade disciplinar não se submete à mesma legalidade restrita que atua na instância penal e não deve, portanto, ser transmutada em uma indevida espécie de responsabilidade penal. Esta distinção entre as duas instâncias deve ser compreendida e vale como uma regra geral. Mas a assertiva acima não se aplica quando se trata especificamente da avaliação do standard probatório da processualística disciplinar. É pertinente tomar como paradigna o standard probatório mais elevado e rigoroso, do processo penal, para se iniciar a construção do módulo de convicção cabível no processo disciplinar. Em face da gravidade embutida no fato de o Estado punir seu agente (sobretudo no caso de pena expulsiva), com o impacto de forte consequência jurídica em relevante rol de direitos da vida do punido, entende-se pertinente permitir refletir no processso disciplinar o mesmo standard probatório do processo penal, qual seja, da exigência de prova além da dúvida razoável. E esta afirmação não contradiz o que foi afirmado acima, da inviabilidade de se importar para a instância disciplinar todos os fundamentos da instância penal. Não se deixa de reconhecer que, enquanto o Direito Penal se caracteriza pela legalidade estrita e pela necessidade de comprovação precisa de todos os requisitos específicos e elementares do tipo, o Direito Disciplinar atua com base em enquadramentos abertos e abrangentes, o que acarreta grande diferença entre o ato de enquadrar uma conduta funcional na lei estatutária e o ato de tipificar uma conduta humana na lei penal (inclusive quando se trata da mesma conduta com dupla repercussão jurídica, marcada pela independência). O respeito àquela manutenção de uma salutar fronteira e parcela de diferenciação entre as duas instâncias, no tema com que aqui se preocupa, se manifesta na diferença entre enquadrar e tipificar, pois uma mesma ação humana e funcional pode, com mais facilidade - ou melhor, com menos requisitos - ser enquadrada disciplinarmente do que pode ser tipificada penalmente. Não há nada de absurdo em reconhecer que para uma conduta funcional preencher as condições de um enquadramento disciplinar expulsível é menos rigoroso que para preencher as condições de um tipo penal, no sentido de as respectivas leis materiais exigirem menos requisitos elementares. Mas, à luz das correspondentes leis processuais, para se considerar satisfeitos os mais elásticos requisitos elementares daquele enquadramento, como regra geral, se requer o mesmo grau de segurança e de convencimento que se requer para se considerar satisfeitos todos os mais restritivos requisitos elementares daquele tipo, sendo então de se exigir para a grave pena estatutária expulsiva o mesmo grau de certeza de se ter prova além de qualquer dúvida razoável. Em análise mais minudente e olhando-se de perto as respectivas regras de Direito material, não há uma estanque e determinística linha de separação e de valoração com que todos os tipos penais estariam acima de todos os enquadramentos disciplinares, sobretudo os expulsivos, em patamar de gravidade e de sancionamento. Afinal, podem ser contrapostos determinados crimes e determinadas infrações disciplinares cujo grau de reprovabilidade, seja social, seja interna corporis, e cujas consequentes apenações indiquem uma maior gravidade da ilicitude estatutária. Pode-se cogitar de crimes de menor repulsividade social, merecedores de penas restritivas de direitos, de transação penal ou de acordo de não persecução penal (ANPP) - e nisto se incluem os crimes contra a Administração Pública cometidos por servidores nesta condição -, enquanto alguns enquadramentos mais graves da Lei Estatutária têm vinculada a capital pena expulsiva, que faz encerrar em definitivo um forte vínculo laboral. Portanto, contrariando o senso geral, nem sempre é correto afirmar que a instância penal é mais gravosa, em termos de repercussão jurídica final, que a instância disciplinar. Havendo então uma imensa zona cinzenta em que repercussões de grave apenação disciplinar expulsiva soam tão relevantes e impactantes na vida como um todo do apenado como de uma certa faixa mais baixa de condenação penal, é sim pertinente refletir no processo disciplinar o standard probatório consagrado no processo penal, da exigência de existência de prova além de qualquer dúvida razoável. Assume-se que a extensão, para o processo disciplinar, do mais rigoroso standard probatório, o mesmo adotado no processo penal, calca-se na ponderação e na valoração da gravidade das repercussões jurídicas advindas de uma condenação administrativa, sobretudo quando expulsiva. De outro lado, se poderia defender a adoção de patamar inferior de módulo de convicção, exaltando que o bem jurídico tutelado pela instância disciplinar, a especial relação laboral estatutária, merece menor relevância, cautela e segurança que os bens jurídicos protegidos na seara penal. Há condenações criminais que acarretam perda de liberdade por um período não extenso e por vezes até curto mesmo, enquanto a pena expulsiva daquele cargo então ocupado à época da ilicitude se torna permanente (a menos de manejos de vias recursais ou de obtenção de nova investidura) para o punido. Se, mesmo havendo tutelas de menor relevo sob a guarda do Direito Penal e ainda assim se tem seu standard vinculado à evidência acima de qualquer dúvida razoável, é perfeitamente cabível defender este mesmo módulo de convicção para o processo disciplinar, ainda que se reconheça que a tutela da relação laboral não é tão relevante como as tutelas extremadas da vida e da liberdade. Enfim, na ausência de previsão legal, de manifestações jurisprudenciais no âmbito do Poder Judiciário e de sólidos tratados da doutrina especializada, quer-se aqui lançar a recomendação inicial de que, para que uma comissão de inquérito, em seu relatório, proponha determinada responsabilização disciplinar ao acusado e para que a autoridade julgadora decida neste mesmo sentido, é indispensável que ambos autores se questionem se as evidências que amparam sua hipótese, ou seja, sua conclusão responsabilizadora do servidor, não são afetadas por alguma dúvida razoável, seja interna ao seu próprio grau cognitivo de convencimento, seja provocada pela defesa. Em outras palavras, na grave instância pública punitiva do processo disciplinar, a comissão e a autoridade julgadora precisam estar seguras de que sua convicção supera e afasta qualquer dúvida razoável de que se pudesse cogitar. Neste caso, tem-se como suprido o necessário standard probatório do processo disciplinar. Portanto, a instância disciplinar, em que é possível aplicação de pena estatutária, especialmente expulsiva, exige um conjunto probatório robusto, que forneça ao julgador a necessária segurança de que não há qualquer outra hipótese que explique as evidências autuadas de forma diversa ou que ao menos suscite dúvida razoável, a favor da defesa. Sendo a responsabilização em processo disciplinar reflexo da atuação do Direito público sancionador, geradora de consequências jurídicas relevantes, o padrão probatório deve ser o mais elevado, superior à evidência clara e consistente, sendo exigível a evidência além de qualquer dúvida razoável. Ora, até aqui, se logrou apresentar a tese de que, dentre os dois standards probatórios que a priori apareciam como cabíveis, do processo penal e do processo civil de improbidade, elegeu-se o primeiro, da prova acima de qualquer dúvida razoável, como o módulo de convicção cabível no processo disciplinar. Reconhece-se que, para se defender a extensão do standard probatório do processo penal para o processo disciplinar, em diversas passagens se utilizou a pena expulsiva para se enfatizar e se realçar a argumentação. Não obstante esta técnica de retórica, é de se acrescentar que também não soa razoável defender que se poderia aplicar, na mesma instância, diferentes módulos de convicção para os degraus escalonados das penas estatutárias (repreensão, suspensão e penas expulsivas), a exemplo do já mencionado padrão de prova clara e convincente para os ilícitos de baixa ou média gravidade, e reservar o padrão da prova além de qualquer dúvida razoável apenas para os ilícitos graves. Basta a ponderada leitura, literalmente, da construção consagrada como o standard de prova da instância processual penal e se questionar se seria viável uma comissão propor em seu relatório e uma autoridade julgadora aplicar em seu julgamento qualquer pena estatutária (até mesmo repreensão) sabendo da existência de alguma dúvida razoável contra a imputação. Não se justifica conceder tamanho grau de liberdade para a autoridade administrativa atuar em uma área tão fortemente marcada pela vinculação, mudando o standard probatório caso a caso. Não cabe admitir um rebaixamento da qualidade probatória exigida em razão da natureza da ilicitude apurada,seja por sua complexidade, seja por sua gravidade (o que, porsua vez, também importa reiterar que o módulo de convicção não deve ser alterado em razão da maior ou da menor severidade da sanção aplicável), como se pudesse se contentar com menor ou menos robusto acervo probatório justo para infrações que se presumem de maior relevância e repulsa. Na mesma linha, defende-se que o padrão exigido de suficiência explanatória não deve se deixar levar pelo bem jurídico tutelado a cada enquadramento. Ademais, ao se atentar para a sintaxe da expressão “standard probatório”, que remete à ideia de um padrão em termos de qualidade de provas, a possibilidade de se flexibilizar tal padrão soa incoerente com aquela noção. Na prática, é perfeitamente cabível a existência de diferentes padrões de suficiência explanatória entre diferentes momentos ou situações processuais no mesmo processo disciplinar, conforme inclusive já se aduziu anteriormente, para a instância penal. Assim, é correto se cogitar de que o módulo de convicção para a decisão de instaurar procedimento correcional investigativo seja inferior ao padrão exigido adiante, para a instauração do processo disciplinar, e que este seja inferior ao maior rigor de exigência ao final, desde a elaboração do relatório pela comissão até o julgamento pela autoridade julgadora. Em segundo lugar, o que aquise aceita é que, de forma homogênea e impessoal,se atribuam determinados padrões de suficiência explanatória para determinados momentos comuns a todos os processos emparelhados, de forma que, indistintamente, o padrão de convencimento exigido para o julgamento, em todos, seja igual entre si mas superior ao padrão da instauração do processo disciplinar e que este, de forma similar, em todos, seja igual entre si mas superior ao padrão de instauração de procedimento correcional investigativo, a título de exemplos. A percepção de que o conjunto probatório acostado aos autos atende o standard probatório definido como necessário passa pela averiguação de o quanto a argumentação probatória é sólida e explicativa, calcada em inferências racionais que se coadunam com o conhecimento de mundo do aplicador, sem necessariamente se vincular à existência de prova direta, visto esta nem sempre ser disponível ou existente. O atendimento da necessária suficiência explanatória não se confunde com quantificação do emprego de provas diretas ou de provas indiretas. Estas são tão hábeis quanto aquelas - só que, diferentemente, muito mais frequentes e comuns - para a satisfação do standard probatório e não devem jamais ser vistas e empregadas com insegurança pelo aplicador, desde que calcadas em sólida base argumentativa. Em conclusão, apesar de todos os esforços aqui dedicados para tentar levantar, talvez até de maneira inédita e com certeza em grau incipiente, inseguro e insuficiente o tema do standard probatório aplicado ao processo disciplinar, de forma quase contraditória, chega-se a este ponto final do tema reconhecendo que a atividade correcional se estabeleceu, avançou, se sedimentou e se elaborou sem talvez jamais ter atentado para este conceito. É de se reconhecer que tudo o que aqui se investiu na tentativa de uma superficial modelação da suficiência explanatória talvez não vá além de um idealismo movido pelo apego ao exaurimento das discussões, até mesmo das mais teóricas que sejam. Esta assertiva advém da convicção de que mais relevante do que tentar estudar sintaticamente e justificar a importação, desde a tradição jurídica anglo-saxônica, de um dos já consagrados standards probatórios das instâncias processuais judiciais (a exemplo da opção ora defendida da adoção da exigência de prova além de qualquer dúvida razoável) ou até mesmo de tentar elaborar uma nova expressão própria com sua sintaxe específica, em tema praticamente inexplorado pelas fontes consagradas, é ter a percepção de que este registro redacional, em forma de um verbete padronizado, seja ele qual for, já se encontra, desde sempre, diluído, encravado, disseminado e enraizado de forma indissociável e inafastável, apesar de imperceptível e não manifestado, no dia a dia da atuação correcional. Ainda que, por mera hipótese, os agentes que atuam desde o recebimento de notícias de irregularidades e que procedimentalizam a fase de admissibilidade, os integrantes das comissões disciplinares e sobretudo as autoridades julgadoras jamais tenham atentado para o rigor teórico do conceito de standard probatório adequado à processualística disciplinar, é bastante provável a inferência de que sempre agiram e agem imbuídos de uma imensa percepção empírica e internalizada deste relevante preceito jurídico, bem como também atentam para a questão correlata da necessária satisfação de seu ônus probante. Talvez porque, cortando transversalmente e de forma bastante pragmática toda a complexa discussão teórica envolvendo este tema, se possa sintetizar que o respeito empírico ao módulo de convicção - seja ele qual for - resida na sólida construção humana de todo aquele que atua na instância pública punitiva, em que fazer avançar qualquer proposta de apenação desamparada da prova suficiente, antes e acima de tudo, ofende mesmo a dignidade humana, não por acaso um fundamento republicano da CF, perceptível e intolerado até pelo mais leigo dos agentes. Uma condenação injusta afronta o fundamento da dignidade humana e, em essência, é este risco, seja por mero erro, seja por arbitrariedade, que o conceito do standard probatório busca evitar. É intrínseco aos valores humanos extrajurídicos e à capacitação e à formação técnica de quem atua nesta gravosa instância buscar não só se assegurar de máximo grau de segurança em sua convicção acerca dos fatos ocorridos, como também garantir à defesa o mais irrestrito exercício de todas as suas prerrogativas constitucionais (a exemplo dos primados da ampla defesa, do contraditório, do devido processo constitucional e da presunção de inocência, dentre outros). Mesmo que jamais se tenha lido ou que ainda não se leia a expressão “standard probatório” no corpo dos processos disciplinares, é certo que todos os agentes intervenientes de parte da Administração empiricamente o atendem quando buscam instruir o feito da melhor forma possível com as provas necessárias e suficientes, ao mesmo tempo em que atendem a todo aspecto formal de contemplar as garantias constitucionais do acusado e de suprirem o seu necessário ônus probante. Portanto, havendo qualquer incompletude no atendimento do requisito probatório essencial, a atividade correcional goza de tão intrínseca maturidade que, mesmo sem em nenhum momento se ler nos autos a expressão “standard probatório”, a Administração ilumina todo seu agir por este valor e pode, em seus pareceres de análise ao fim do processo disciplinar, decidir pelo perfeito atendimento do módulo de convicção, determinando a ultimação ou o refazimento de peças processuais. Na prática, o que se verifica é a maciça ratificação, tanto nos crivos administrativos internos quanto no controle externo advindo da livre ida ao Poder Judiciário, dos trabalhos das comissões e das autoridades julgadoras, o que só reforça a tese já exposta de que, intrínseca e empiricamente, a ideia abstrata de que é necessário atender a um patamar mínimo de qualidade e de força explanatória do conjunto de provas autuadas já reside, independentemente de modelação formal, na essência da atividade correcional, bem como também se percebe a correta satisfação do ônus probante e de suas regras. |