POSFÁCIO
Teoria da prova sob o prisma dos standards probatórios Por Marcos Salles Teixeira387 1. Conceitos Introdutórios O processo, independentemente da instância jurídica em que se estabelece, não guarda um fim em si mesmo e não existe por si só; ao contrário, é mera instrumentalidade por meio da qual, ao seu final, o Estado-juiz cumpre sua função de dizer o direito discutido em uma lide, em que interesses antagônicos se qualificam, de forma geral, como uma pretensão resistida. Na instância civil, pode-se ter uma parte que alega ou pleiteia e outra que contesta ou resiste; na instância penal, pode-se ter uma parte, sempre representando o Estado, que acusa, e outra que se defende. Em ambos os casos, o autor pleiteia ou acusa com base no que entende como fatos constitutivos do seu direito ou do seu poder-dever de agir; e a outra parte, para obstar a alegação ou a acusação que lhe é contrária, baseia-se nos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito ou daquele poder-dever do autor. Dentre estes dois extremos de relações processuais, a instância disciplinar opera de modo próximo e similar a esta última, já que ambas se inserem no rol do direito público sancionador, ainda que com suas próprias peculiaridades e individualidades principiológicas e normativas. Enquanto no processo civil a objetivada dicção do direito, ao seu final, está relacionada à comprovação de algum fato do qual, em termos genéricos, se extrai alguma (ou mais de uma) consequência jurídica de diversas naturezas, nos processos penal e disciplinar, de forma mais específica, diante de sua natureza punitiva, a dicção do direito está relacionada, respectivamente, à comprovação do crime e da infração estatutária. O processo justo, como instrumento de justiça, se externaliza por decisões que, em decorrência da melhor representação possível da verdade nos autos, obtida pelo resgate probatório dos fatos, apliquem a correta responsabilização aos agentes destinatários do ordenamento pátrio. Esta é a melhor qualidade da resposta que o instrumental público do processo logra fornecer às partes envolvidas e à sociedade. A busca da maior probabilidade da verdade, mediante a correta determinação dos fatos ocorridos, é essencial para o equilíbrio, para a satisfação e para o cumprimento do ordenamento interno. Contudo, é necessário, desde já, introduzir a ideia crítica e realista de verdade relativa, que guarda alguma - e não total - fidedignidade com o mundo concreto, em contraponto à verdade absoluta, que não passa de mero ideal normativo. Neste contexto, coexistem a indispensável busca da verdade absoluta e a inafastável limitação de que somente é possível trazer ao processo a verdade operacional e teleologicamente provável (não no sentido de frequente ou comum, mas sim no sentido do que é possível de ser provado). O aplicador deve sempre ter em mente que, se por um lado, não lhe parece viável a segurança irrefutável de configurar no processo a verdade absoluta, plena, una e inquestionável, por outro lado, sabe que o direito processual se satisfaz com um patamar de verdade relativa, provável, razoável e processualmente necessária e suficiente para ser racionalmente aceita e justificada como crença verdadeira. Se é assim, compreende-se que é possível falar de um espectro de graus de elucidação da verdade trazida aos autos, o que também permite, desde já, antecipar que é possível obter instruções probatórias de maior e de menor qualidade à vista da exigência probatória caso a caso. Dentre diversos aspectos que dinamicamente interagem na atividade probatória, a ação de provar um determinado fato, no sentido de demonstrá-lo, inclui a dificuldade de não ser apenas uma construção cognitiva humana. A atividade probatória, para além de ser cognitiva, também se dedica a reconstruir, da forma mais próxima possível da verdade, um fato pretérito, ocorrido no tempo passado, com o fim de ser avaliado e valorado no tempo presente e até no tempo futuro. A ação de provar um fato é, de certa forma, uma reconstrução temporal, e não uma mera observação contemporânea e simultânea à ocorrência. O agente condutor da atividade probatória enfrenta o desafio de, por meio da prova, reconstruir um fato que ele mesmo não observou, não vivenciou, não viu ocorrer. Esta percepção de que a prova é uma reconstrução de um fato pretérito reforça a aceitação de que o melhor que se obtém no processo, em sua instrução probatória, é a mais provável aproximação da verdade real, por meio da verdade processual. Os meios de prova são os instrumentos ou as ferramentas utilizadas pelas partes para demonstrar os fatos alegados nos autos e, por fim, para fornecer convencimento ao julgador. Diante das listas não taxativas, as provas orais (oitivas de testemunhas, oitivas de declarantes, acareações e interrogatórios), as provas periciais lato sensu (laudos periciais e laudos técnicos), os documentos, as presunções legais, as diligências, as pesquisas em sistemas informatizados, os reconhecimentos de pessoas ou de coisas são alguns meios de prova aqui exemplificados. Para a própria segurança jurídica das partes, ao julgador é dado decidir a questão de Direito delimitadamente à luz do que se alega, do que se contesta, do que se acusa, do que se defende e, por fim, do que se prova nos autos. Caso as partes não tragam ou não permitam que se traga, tempestivamente, as provas necessárias para a solução do litígio, é certo que a verdade a transparecer nos autos sofrerá mitigações. Isto impõe que as partes devem se submeter às regras processuais para que suas alegações, contestações, acusações e defesas sejam plenamente consideradas na decisão. Se, por um lado, as partes têm asseguradas a extensa liberdade de emprego dos meios de provas admitidos em Direito e a mais ampla defesa, por outro, devem empregar tais prerrogativas processuais dentro do método legalmente sistematizado, em que se incluem, como salutares delimitações, não só a forma e a licitude dos meios de prova, mas também o momento adequado de fazê-lo, atendendo ao prazo da instrução processual. O objetivo da busca da verdade para os autos não é absoluto, pois precisa conviver em equilíbrio dinâmico e temperado com outras tutelas, também indispensáveis, como a duração razoável do processo, a inadmissibilidade de provas ilícitas e a eleição, pelo próprio legislador, de que determinados fatos não devem ou, ao menos, não precisam ser objeto de prova (por exemplo, os fatos marcados pela notoriedade, pela confissão, pela incontrovérsia, pela construção por presunção, pela impertinência, pela irrelevância e pela protelação), sem que estas limitações prejudiquem o fim maior, de se instrumentalizar uma justa dicção do direito e de se fazer justiça. Pode-se dizer, em resultado, que, como regra geral e apriorística, a prova se volta e se destina, sobretudo e principalmente, mas não necessariamente de forma rigidamente exaustiva, aos pontos controversos e, ao mesmo tempo, relevantes da lide, que causam discussão e dúvida pertinente de se esclarecer. Mas isto não quer dizer que o contexto fático global, incluindo os fatos notórios, confessados, incontroversos e objeto de presunções ou até mesmo impertinentes, irrelevantes e protelatórios, seja desprezado na formação da convicção. Obviamente que não; a dispensa de ser envolvido em procedimento probatório não se confunde com descarte para a formação da verdade processual. Reitera-se que o processo não visa à dicção acerca de uma crença no sentido de discussão teórica sobre a realidade como um todo, mas sim à tomada de uma decisão racional, depois de seguido um rito instrumental legal e de acordo com um critério de suficiência (a ser chamado de standard de prova). Uma crença não é prova em si mesma; valer como prova não é uma qualidade intrínseca, natural e inafastável de uma crença. Nada é prova quando visto de forma absoluta, estanque, intransitiva e isolada. A noção de prova embute a ideia de relação, requerendo uma função relacional que aquela crença exerce sobre outra. A ideia de prova é sempre relacional, pois uma crença somente é prova se exercer exata e justamente função de prova (a chamada função probatória, que é um papel demonstrativo), determinada e identificada por meio de construção humana inferencial, para outra crença. Para se avaliar se um fato tem função de prova em relação a outro, compete ao aplicador empregar, além das evidências trazidas pelas crenças justificadoras (pelos fatos que provam), o seu próprio conhecimento de mundo (também chamado de conhecimento de fundo ou de background), que sempre vem de sua experiência pretérita e concreta de vida. Esta experiência de vida é a soma acumulada de conhecimentos empíricos, acadêmicos, técnicos e profissionais do aplicador, com sua vivência como servidor e agente correcional e, ainda, com sua percepção como adulto instruído, informado e inserido no contexto do seu tempo. Esta crença do background se manifesta, por exemplo, quando o agente correcional, diante do fato sob análise, sabe que determinada conduta humana não poderia ter se concretizado se não fosse cometida com dolo, como em um desembaraço aduaneiro ou na lavratura de um auto de infração de forma flagrante, inexplicável e intoleravelmente divorciada do regramento jurídico ou da postura funcional que se esperaria do servidor. Esta construção encontra-se positivada no Direito pátrio, conforme se vê no art. 375 do CPC, que autoriza que o julgador empregue não só a sua experiência técnica, como também e principalmente o conhecimento de mundo, que reflete a sua própria experiência de vida. CPC - Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial. Considerando que o objetivo da prova é firmar a convicção do julgador, tem-se um inequívoco aspecto subjetivo em toda esta construção intelectual, em que a autoridade a quem se dirige a prova pode evoluir desde o estado de ignorância acerca do fato, avançando para a dúvida, progredindo para o conhecimento e, por fim, culminando no convencimento. Para este fim, vigora no ordenamento pátrio o sistema do convencimento motivado ou da persuasão racional, consagrado no caput do art. 155 do CPP e no art. 371 do CPC, o qual permite ao julgador valorar as provas de acordo com a sua livre convicção – devendo fazê-lo delimitadamente ao que consta do processo, indicando a motivação ou os fundamentos de sua decisão. CPP - Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Para suprir o sistema do convencimento motivado ou da persuasão racional em que o julgador valora as provas, se, por um lado, este deve limitar-se ao conjunto probatório autuado e não pode se manifestar por mera opinião pessoal extra-autos, por outro, pode diligenciar para trazer ao processo tudo o que cogita ser relevante para o seu próprio convencimento. Com o intuito de convencer o julgador, é necessário que o aplicador expresse nos autos o seu conhecimento de mundo, o que, no caso do processo disciplinar, impõe que a comissão, no curso da instrução probatória, e mais especificamente na indiciação, e também no relatório, manifeste as suas crenças do background acerca do fato (acerca das provas como elemento de prova, acerca do factum probans). É de se ponderar que a comissão deve não apenas encartar no processo as provas que consubstanciam a infração disciplinar, mas também deve fazê-lo de forma atenta ao recorte de suficiência dos fatos que devem ser autuados, trazendo elementos e detalhes suficientes que permitam ao acusado compreender o fato que lhe é imputado e exercitar sua ampla defesa, suprindo, na sequência, a capacidade de o julgador julgar. Cabe ao aplicador uma capacidade de convencimento, de persuasão e de dialética, porque, em síntese, pode-se dizer que provar algo é argumentar sobre isto. Neste contexto, são importantes não só as hipóteses formuladas pelo agente condutor das apurações, o seu necessário teste à vista das evidências e a sua indispensável submissão ao contraditório por parte da defesa. Fazem-se relevantes também as hipóteses alegadas pela defesa, em alternativa ao teor acusatório. Nesta percepção lógica do processo probatório, é interessante para o agente condutor das apurações que a defesa formule suas hipóteses, a fim de serem testadas diante das evidências, podendo acarretar, já de imediato, a sua inaplicabilidade e o consequente fortalecimento das hipóteses daquele agente ou, se for o caso, o seu acatamento, que, dependendo do caso, pode até levar ao arquivamento do processo. Pode-se dizer que a omissão da defesa em não apresentar sua versão, na forma lógica de suas hipóteses, a fim de postergar até o último momento processual em que pode fazê-lo, não raro se revela uma estratégia, pois impede que o agente condutor as teste diante das primeiras evidências e, desde já, as desconstrua. Na prática, contudo, ao se avançar neste ciclo contínuo, nem sempre é possível testar todas as hipóteses, cabendo selecioná-las, mediante filtros de plausibilidade, a fim de excluir do escopo as menos prováveis. Não há como negar que este ciclo dinâmico apuratório de formular hipóteses e de testá-las à vista das evidências sempre embute um processo cognitivo que, de certa forma, obriga a reconhecer que não há como impedir que o agente condutor das apurações e até mesmo o julgador produzam provas, no sentido mais amplo desta expressão. Afinal, conforme afirmado acima, a atividade de provar algo é umbilicalmente associada à capacidade de argumentar, e argumentação é um processo humano mental somente possível de ser realizado à luz do conhecimento de mundo (refletindo experiência de vida e/ou também regras jurídico-normativas e/ou regras de natureza conceitual). Cabe abordar o sentido estrito do termo “prova”, na contraposição à expressão “elemento informativo”. Prova, em sentido estrito e rigorosamente técnico, é todo elemento disponível no mundo real capaz de contribuir para a formação do convencimento da autoridade julgadora a respeito das alegações (ou das acusações) e das contestações (ou das defesas) sobre o fato objeto do processo, após ter sido submetido ao contraditório e à ampla defesa da parte contrária (o acusado, no caso do processo disciplinar). Já em sentido corrente e informal, o termo pode ser empregado mesmo sem submissão ao contraditório e à ampla defesa. A rigor, o elemento capaz de contribuir para a formação de convencimento antes da submissão ao contraditório e à ampla defesa ainda não é prova, mas, sim, apenas elemento informativo. O caput do art. 155 do CPP também se destaca pela expressa vedação de condenação baseada exclusivamente em elementos informativos coletados em procedimento não contraditório. Obviamente, não há vedação para o emprego de elementos informativos na formação final de convencimento da autoridade julgadora, desde que atuem em conjunto com provas coletadas na fase contraditória - isto é, desde que não sejam os elementos exclusivos a motivarem a condenação. CPP - Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Como regra, permite-se empregar o termo “prova” em seu sentido corrente e informal, abarcando os elementos informativos (característicos dos procedimentos correcionais investigativos da fase de admissibilidade) e as provas em sentido formal e estrito (características da fase contraditória do processo disciplinar). Na doutrina tradicional, a prova comporta classificações quanto à forma, quanto ao sujeito ou fonte e quanto ao objeto. Quanto à sua forma, compreendida como a modalidade ou maneira como se apresenta, a prova pode ser classificada em: testemunhal, quando decorre da oralidade de uma pessoa; documental, quando decorre do registro escrito ou gravado de forma permanente por uma pessoa (em que se inclui o laudo pericial); e material, quando decorre da percepção que se extrai de coisa ou de vestígio. Quanto ao seu sujeito ou fonte de que emana, compreendida como todo elemento de onde se extraem informações valoráveis pelo julgador, a prova pode ser classificada em: pessoal, quando emana de pessoa natural, como são os casos das formas testemunhal e documental; e real, quando emana de coisa, como é o caso da prova material. Por fim, quanto ao seu objeto, ou seja, quanto ao conteúdo que a mesma permite demonstrar, a prova pode ser classificada em: direta, quando seu objeto é o fato requerido em lei para a produção do efeito jurídico (conduz diretamente ao fato que se quer provar) e indireta, quando seu objeto permite a inferência racional do fato que se quer provar (um fato intermediário conduz, por inferência racional, ao fato que se quer provar). 387 Texto adaptado do Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, Marcos Salles Teixeira, o qual foi encaminhado para a Controladoria-Geral do Estado de Minas Gerais em especial contribuição à segunda edição do Manual de Apuração de Ilícitos Administrativos. O texto na íntegra se encontra no “Anotações sobre Processo Administrativo Disciplinar”, de sua autoria. |