4.2. Ônus Probante e Suas Regras de Distribuição Associadas ao Standard de Prova Standard de prova e ônus probante são expressões relacionadas, pois a decisão comporta as avaliações acerca do atendimento ou não da suficiência probatória da instância em tela e da identificação da parte que sucumbirá caso o modelo de constatação exigido não tenha sido atingido. A avaliação se a hipótese alegada por uma parte é mais provável que a hipótese defendida pela parte contrária não se cinge apenas à definição do standard probatório, pois atrai simultaneamente a discussão acerca do ônus da prova, ou seja, da identificação de qual das partes sucumbirá caso não se atenda ao critério mínimo da suficiência explanatória probatória. O standard probatório indica o nível de prova necessário para a formação de convicção de parte do julgador de que determinada hipótese está comprovada e o ônus da prova estabelece a parte que terá de arcar com a consequência jurídica negativa caso aquele modelo de constatação não seja suprido em decorrência de insuficiência de prova, conforme positivam a parte inicial do art. 156 do Código de Processo Penal (CPP) e o caput e seus incisos I e II do art. 373 do Código de Processo Civil (CPC). CPP - Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: Em harmonia com o já comentado princípio da busca da verdade processual, ambas as leis processuais indicam o caráter distributivo do ônus probante. Incumbe à parte que apresenta uma pretensão baseada em determinada alegação fática comprovar este fato, como é o caso da acusação, no que diz respeito à materialidade, à autoria, à culpabilidade e ao ânimo subjetivo culposo ou doloso do autor, a fim de gerar a maior probabilidade possível de juízo de certeza no julgador; mas, não obstante, o ônus é distribuído à parte oposta no que tange ao aproveitamento de suas próprias alegações, a exemplo de álibis ou excludentes de ilicitude, de culpabilidade e de punibilidade alegados pela defesa, a fim de ao menos gerar dúvida razoável no julgador. Também no processo disciplinar, incumbe à cada parte, ou seja, à comissão processante e ao acusado, o ônus da prova de suas próprias alegações. Lei nº 9.784, de 1999 - Art. 36. Cabe ao interessado a prova dos fatos que tenha alegado, sem prejuízo do dever atribuído ao órgão competente para a instrução e do disposto no art. 37 desta Lei. Em consequência, o ônus da prova no processo disciplinar é dividido: a prova não é obrigação exclusiva da Administração, que não tem de provar o que a defesa simplesmente alega. Para o processo disciplinar, o conceito de distribuição de ônus probante reforça o princípio da busca da verdade processual, pois, se não fosse a sua compreensão, caberia à Administração buscar exaustivamente a verdade material, mesmo quando a defesa apresentasse alegações sem provas e não se desincumbisse de seu ônus de provar. Para além disto, na peculiar visão interrelacionada com que princípios podem se reforçar mutuamente em determinada hipótese, a divisão do ônus probante também se harmoniza com a necessária obediência ao princípio da boa-fé, consagrado no art. 5º do CPC, que obriga inclusive e sobretudo a defesa a atuar com espírito colaborativo e com lealdade processual, para que se obtenha a máxima probabilidade possível da verdade. CPC - Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. Até aqui, o que se descreveu, como a regra geral do tema, recebe a denominação doutrinária de distribuição estática do ônus da prova, com a lei previamente associando-o a quem alega. Convém esclarecer que, em sentido contrário, a priori, não se vislumbra aplicabilidade no processo disciplinar do conceito mais avançado de distribuição dinâmica do ônus da prova, estabelecido no § 1º do art. 373 do CPC, segundo o qual o juiz poderia, mediante peculiaridades do caso concreto, tais como impossibilidade ou dificuldade de comprovação por parte de a quem incumbia originalmente o ônus probante, atribuí-lo à parte adversa, revertendo aquela postura apriorística de distribuição estática feita pela lei. Não cabe a comissão, no curso do processo disciplinar, inverter o ônus probante acusatório que lhe incumbe e repassá-lo para a defesa, ainda que diante de casos em que o acusado poderia ter maior facilidade de produzir a prova necessária - até porque, em instância punitiva, esta inversão feriria a garantia constitucional de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, assegurado no inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal. CF - Art. 5º A síntese bastante elucidadora do presente tema é que, enquanto a Administração busca gerar o máximo possível de juízo de certeza no julgador de que houve a ilicitude, para defesa basta gerar dúvida razoável, a fim de fazer operar, a seu favor, o princípio da presunção de inocência. De uma forma geral, o autor de uma postulação, como uma pretensão (na forma de uma alegação) civil ou uma acusação penal ou disciplinar, visa a modificar o estado de direito da parte oposta e somente é contemplado com a decisão a seu favor caso se desincumba do ônus de provar os fatos que a norma abstrata do Direito material estabelece como de ocorrência necessária e suficiente para aquela repercussão prevista. Os fatos constitutivos são aqueles que, uma vez provados pelo autor, geram a consequência jurídica da pretensão ou da acusação. Caso a parte autora não se desincumba deste ônus, o estado de direito da parte oposta não é atingido. E mesmo que a parte autora se desincumba de seu ônus, ainda pode a parte contrária, a fim de obstar a pretensão ou a acusação, provar a veracidade de fatos outros, que impeçam, modifiquem ou extinguam o direito ou o poder-dever alegado pelo autor para agir (os chamados fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito). No que tange especificamente à instância processual disciplinar, é de se lembrar que o poder-dever de a Administração processar seu servidor faltoso não se confunde exatamente com uma pretensão sua, no sentido de buscar uma decisão que lhe seja favorável. O que move a Administração é a impessoal e imparcial busca do esclarecimento fático, da qual pode resultar decisão favorável ou desfavorável ao servidor. Os princípios da oficialidade e da busca da verdade processual impõem que a comissão busque o esclarecimento fático, inclusive realizando atos de instrução probatória cujo resultado seja favorável ao acusado, o que não se confunde com o ônus de assumir a comprovação daquilo que alega a defesa. Nos casos mais específicos do Direito público sancionador, penal ou disciplinar, se o Estado toma a iniciativa, por meio do processo, de fazer valer seu poder-dever de punir o infrator com as penas previstas na norma jurídica de Direito material (lei penal ou lei estatutária), incumbe-lhe o ônus de provar a ocorrência dos fatos constitutivos da sua competência punitiva que a norma estabelece como necessários e suficientes para autorizar o agir estatal e a consequente aplicação da repercussão, restando sem condenação se tais fatos não forem provados. Mas este ônus a cargo do Estado não deve ser excessivo a ponto de impedir a sua atuação punitiva, cabendo uma distribuição entre as partes. Não cabe à acusação a iniciativa de ofício de ter de contraprovar todas as teses excludentes de responsabilidade que a defesa possa alegar. Se a defesa vislumbra a interveniência de fatos que, segundo a norma jurídica de Direito material, impeçam, modifiquem ou extinguam o poder-dever punitivo estatal, incumbe-lhe o ônus de proválos. Se, de um lado, em qualquer espécie de processo inserido em contexto de Estado Democrático de Direito, vigora, como regra geral, a liberdade de ampla produção probatória, que, se bem exercitada pela parte, trazendo aos autos ou peticionando pela produção de provas relevantes, lhe confere maior possibilidade de sucesso na lide, de outro lado, esta prerrogativa se transmuta em ônus quando não suprida, pois faz aumentar o risco de uma decisão que lhe seja desfavorável. Anotou-se tratar de uma prerrogativa, pois é verdade que o ônus probante não recai sobre a parte como um dever de cumprimento obrigatório, mas sim como uma faculdade que lhe é concedida, com a liberdade tanto de exercitar seu direito de produzir ou de requerer provas a seu favor, a fim de contestar o que a parte contrária afirma em seu desfavor, na busca de consequência decisória processual positiva, quanto de abrir mão daqueles direitos e de assumir o risco da consequência negativa. O não exercício, pela parte, da faculdade que lhe foi concedida pela regra de ônus probatório pode gerar para este que se omitiu uma consequente situação de desvantagem. Para se satisfazer o exigente standard de prova penal, é necessário comprovar cada elemento do crime com evidências que superem a dúvida razoável. Do contrário, não havendo prova condenatória para além da dúvida razoável, é de se operar a absolvição. A propósito desta dúvida razoável, é de se posicioná-la mais forte que mera dúvida inconsistente ou fantasiosa e também mais forte até que mera dúvida possível ou imaginária, que não justificam absolvição, e menos exigente que dúvida substancial ou grave incerteza, que, obviamente, também operam a absolvição. Obviamente, este standard probatório não impede a condenação diante de alegações da defesa pouco críveis e de mínima ou remota plausibilidade diante das provas. A dúvida dita como razoável e hábil a definir o nível de convicção necessário no processo penal deve ser uma dúvida justa e honesta baseada na razão, no senso comum, na experiência de vida e no conhecimento de mundo. Demonizar a prova indiciária, assim como endeusar a prova direta, reflete hoje falta de conhecimento ou senso crítico. As vantagens e desvantagens de ambas só podem ser aferidas, em regra, no caso concreto. O cerne da questão probatória não está no tipo de prova presente, mas no grau de convicção que gera. E, quanto ao grau de convicção, a confusão é talvez mais perniciosa do que aquela que reina na matéria indiciária. Exigir, para uma condenação, ‘certeza’, ‘mais que probabilidades’ ou ‘ausência de dúvidas’ reflete novamente a falta de criatividade, de conhecimento ou visão crítica. Toda a epistemologia e a Iógica modernas ensinam, em uníssono, que não temos como conhecer o mundo - e isso inclui fatos do passado - para além de uma grande probabilidade. Por isso, não há como exigir, para uma condenação, mais do que o standard norte-americano exige, que é uma convicção da culpa do réu para além de dúvida razoável. Deltan Martinazzo Dallagnol, A Visão Moderna da Prova Indício, in Daniel Resende Salgado e Ronaldo Pinheiro de Queiroz (Coordenadores) e outros, A Prova no Enfrentamento à Macrocriminalidade, pg. 122, Editora JusPodium, 2ª edição, 2015. |
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