6.4.2.4. ATOS LESIVOS EM LICITAÇÕES E CONTRATOS (ART. 5°, INCISO IV)
O inciso IV do art. 5° apresenta condutas passíveis de responsabilização no âmbito de licitações e contratos. É evidente a preocupação do legislador com as contratações públicas, notoriamente associadas a ocorrências de fraudes por parte de empresas licitantes e contratadas pelo Poder Público. Em decorrência disso, dos onze atos lesivos estabelecidos no art. 5°, sete relacionam-se exclusivamente a licitações e contratos públicos.
Esses atos lesivos apresentam condutas semelhantes aos crimes previstos no Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 (Código Penal); na Lei n° 12.529, de 2011 (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência); e na Lei n° 8.666, de 1993, revogada pela Lei nº 14.133, de 2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Públicos).
Para fins didáticos, é possível estabelecer uma correlação entre os ilícitos do inciso IV do art. 5° e os crimes a que a Lei nº 14.133, de 2021, faz referência. Embora sejam ilícitos de naturezas diversas – os atos lesivos são infrações administrativas, enquanto os arts. 377-E a 337-P do Código Penal preveem tipos de natureza penal –, há a possibilidade de se recorrer à doutrina e à jurisprudência firmada a respeito da interpretação dos tipos criminais, desde que consideradas suas diferenças e realizadas as devidas adaptações para o Direito Administrativo Sancionador. A título de exemplo, podemos fazer um paralelo entre crimes formais e os ilícitos formais encontrados na LAC.
É importante observar que os crimes em licitações e contratos administrativos não estão mais inseridos no corpo da Lei, como acontecia na Lei nº 8.666, de 1993. Agora figuram no Capítulo II-B do Código Penal, havendo pequena mudança na redação e agravamento das penas. Por fim, diferentemente dos demais dispositivos da Lei nº 14.133, de 2021, os artigos referentes aos crimes e penas entraram em vigor a partir da publicação da nova lei, ocorrida em 1º de abril de 2021, sendo revogados imediatamente os artigos 89 a 108 da Lei nº 8666, de 1993.
Frisa-se que a Lei nº 14.133, de 2021, em seu art. 155, dispôs que o licitante ou o contratado também poderá ser responsabilizado pelos atos lesivos previstos no art. 5º, da Lei nº 12.846, de 2013.
Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações:
I - dar causa à inexecução parcial do contrato;
II - dar causa à inexecução parcial do contrato que cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo;
III - dar causa à inexecução total do contrato;
IV - deixar de entregar a documentação exigida para o certame;
V - não manter a proposta, salvo em decorrência de fato superveniente devidamente justificado;
VI - não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta;
VII - ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;
VIII - apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato;
IX - fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato;
X - comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza;
XI - praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação;
XII - praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. (grifo nosso)
Por conseguinte, em face da ocorrência de infrações que simultaneamente afrontam a Lei Anticorrupção e outras leis de licitações e contratos da Administração Pública, será observado o rito procedimental do PAR, em um processo único de apuração e julgamento, conforme determinação do art. 159 da Lei nº 14.133/2021:
Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.
Temática que será discorrida no item 5.5 deste Manual.
Agora, retomando a redação do art. 5º da Lei n° 12.846, de 2013, observa-se que em todas as condutas elencadas no inciso IV há menção à palavra fraude.
Em sua acepção ampla, fraudar é enganar, iludir, dissimular, utilizar-se de artifício para induzir alguém a erro ou para nele o manter. Trata-se de ação ilícita, desonesta, ardilosa, em que se busca enganar outrem. |
No ordenamento jurídico, uma descrição de fraude é encontrada no Código Penal, no capítulo referente ao “estelionato e outras fraudes” (Capítulo VI). Nesse contexto, o art.171 dispõe sobre o crime de estelionato, que consiste em “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
Segundo Greco Filho, a “fraude é o ardil, o artifício, o engodo, a manipulação de circunstâncias”309. Dessa forma, configura fraude a conduta de alguém que, agindo em interesse de uma determinada pessoa jurídica, dissimula aspectos da realidade como intuito de obter vantagem indevida. De acordo com a Instrução Normativa n° 3, de 2017, da CGU, fraude consiste em:
Quaisquer atos ilegais caracterizados por desonestidade, dissimulação ou quebra de confiança. As fraudes são perpetradas por partes e organizações, a fim de se obter dinheiro, propriedade ou serviços; para evitar pagamento ou perda de serviços; ou para garantir vantagem pessoal ou em negócios.
O International Auditingand Assurance Standards Board, órgão internacional normalizador independente de auditoria, no normativo ISA 240, define fraude como “um ato intencional praticado por um ou mais indivíduos da administração, pelos responsáveis pela governança, por funcionários ou por terceiros, envolvendo o uso da falsidade para obter uma vantagem injusta ou ilegal.310”
Diferentemente do erro, que é ato involuntário e não intencional, a fraude é acompanhada do objetivo de obter vantagem ilegítima ou ilícita. Em consonância com essa ideia, o art. 2° da Lei n° 12.846/2013 dispõe que os atos lesivos são praticados em interesse ou em benefício, exclusivo ou não, da pessoa jurídica infratora. Vale lembrar, porém, que esse benefício não precisa se concretizar para que se configure o ato lesivo, bastando, assim a ocorrência da conduta fraudulenta.
A Resolução do Conselho Federal de Contabilidade n° 1.203, de 2009, alerta para a dificuldade envolvida na descoberta e na apuração de fraudes:
A fraude pode envolver esquemas sofisticados e cuidadosamente organizados para sua ocultação. Portanto, os procedimentos de auditoria aplicados para coletar evidências de auditoria podem ser ineficazes para a detecção de distorção relevante que envolva, por exemplo, conluio para a falsificação de documentação que possa fazer o auditor acreditar que a evidência de auditoria é válida quando ela não é311.
Diante disso, a CGU recomenda que a equipe envolvida na apuração da fraude obtenha “conhecimentos e habilidades suficientes sobre esquemas de fraude, técnicas de investigação e legislação aplicável, bem como que busque apoio especializado e prime pelo bom relacionamento com as demais instituições de defesa do Estado”312.
Segundo o TCU, “a configuração da fraude à licitação não está associada ao seu resultado, ou seja, ao sucesso da empreitada”313. Dessa forma, como já destacado anteriormente, não é necessário que o resultado pretendido pelo autor da fraude tenha se configurado concretamente.
Cita-se, como exemplo, a apresentação, por uma empresa participante de uma licitação pública, de documento de habilitação com conteúdo falso, a pretexto de preencher as exigências do Edital e sagrar-se vencedora do certame. Caso a falsificação tenha sido descoberta pela Comissão de Licitação no momento da análise da documentação, ensejando a desclassificação da concorrente, o ilícito se configuraria, mesmo que a empresa não tenha obtido o resultado desejado, qual seja, vencer a licitação e ser contratada pela Administração Pública.
Uma vez que as alíneas do inciso IV apresentam ilícitos semelhantes entre si, é possível, como já afirmado, que uma só conduta se enquadre em mais de uma das alíneas. É possível também que essas fraudes estejam associadas à prática de outras condutas lesivas, como corrupção ativa empresarial.
Considere o exemplo de uma empresa que promete o pagamento de vantagem indevida a agente público, para que este direcione uma licitação para sua contratação (corrupção ativa empresarial). Nessa situação hipotética, são praticadas sucessivas fraudes associadas ao ato de corrupção, por parte de agentes públicos, em conluio com os representantes da empresa. Um servidor insere cláusulas restritivas para garantir a contratação da empresa, outro agente público estabelece os preços dos itens contratados acima dos valores de mercado, e o fiscal do contrato atesta a realização de serviços que não foram efetivamente prestados. Parte dos valores recebidos irregularmente pela empresa são utilizados para o pagamento da vantagem indevida prometida aos agentes públicos corrompidos. Trata-se, nesse caso, de fraudes em licitações e contatos (inciso IV do art. 5°), tanto no procedimento licitatório, como na execução do contrato, associadas à corrupção ativa empresarial (inciso I do art. 5°).
Ressalta-se, também, a relação entre os atos lesivos do inciso IV do art. 5° e as infrações da ordem econômica, previstas na Lei de Defesa da Concorrência (Lei n° 12.529, de 2011). Assim, haverá situações em que os mesmos fatos poderão ser enquadrados, concomitantemente, como ato lesivo da Lei n° 12.846, de 2013, e como infração à ordem econômica. Em especial, cita-se a prática de cartel, na qual há um acordo entre empresas sobre, por exemplo, preços, condições, vantagens ou abstenções em licitação pública, conduta prevista no art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência314.
a) Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público (art. 5°, inciso IV, “a”)
A alínea “a” do inciso IV descreve um ato lesivo semelhante ao crime previsto no art. 337-F, do Código Penal. Neste, porém, exige-se a comprovação de um elemento a mais, qual seja, “o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”. Trata-se de um delito de gravidade média, quando comparado aos demais crimes da Lei de Licitações, tendo-se como parâmetro a pena a ele cominada (detenção de 4 a 8 anos).
“Frustrar” significa “enganar a expectativa de; iludir; defraudar; baldar; inutilizar”315. Comentando o art. 90 da Lei n° 8.666, de 1993316, Marçal Justen Filho explica que “a primeira modalidade (frustrar) aperfeiçoa-se através da conduta que impede a disputa no procedimento licitatório”317. O ilícito envolve qualquer “conduta praticada por um sujeito privado (participante ou não da licitação) que disponha de poderes jurídicos ou de condições materiais para impedir a competição inerente à licitação”318. A segunda modalidade do ilícito (fraudar), segundo Justen Filho, “envolve o ardil pelo qual o sujeito impede a eficácia da competição”319.
É necessário comprovar a existência de um ajuste, de uma combinação ou de qualquer outro expediente semelhante, isto é, que envolva um conluio entre agentes. Justen Fillho observa que, “normalmente, essa hipótese caracteriza-se quando diversos licitantes arranjam acordo para determinar a vitória de um deles”.320
Marçal apresenta ainda outras características do crime do art. 90 da Lei de Licitações que se aplicam ao ato lesivo da alínea “a” do inciso IV do art. 5° da Lei Anticorrupção. O autor afirma que, para a configuração do ilícito, não é necessário que a frustração ou a fraude comprometa totalmente a eficácia da licitação. Basta que somente alguns dos aspectos do certame sejam atingidos pela conduta lesiva.321
Em relação à matéria, o STJ e o TCU entendem o seguinte:
A anulação do certame licitatório, em razão de evidente ajuste prévio entre os licitantes, não afasta a tipicidade da conduta prevista no art. 90 da Lei 8.666/1993314. Entretanto, deixei assente que a intervenção deste Tribunal se mostrava oportuna em relação à violação da ordem jurídica e à possibilidade de apuração de responsabilidade, pois, a revogação do procedimento não tirava o valor desta denúncia, quanto aos diversos indícios apontados demonstrativos da existência de conluio entre as empresas[...].322
Dessa forma, caso a fraude seja descoberta pela Administração Pública e o certame seja declarado nulo, o ilícito subsiste, uma vez que este se configura no momento da realização da conduta que impede ou prejudica a competitividade do procedimento licitatório.
b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público (art. 5°, inciso IV, “b”)
A descrição do ato lesivo da alínea “b” do inciso IV do art. 5° da Lei n° 12.846, de 2013, correspondia à conduta estabelecida no art. 93 da Lei n° 8.666, de 1993. Atualmente está prevista no art. 337-I do Código Penal. A Lei de Licitações também prevê esse crime.
O âmbito de abrangência desse ato lesivo é bastante amplo. Os sentidos dos três verbos núcleo da conduta (impedir, perturbar e fraudar) se aproximam e muitas vezes podem se sobrepor. Porém, é possível fazer uma distinção entre eles para que se possa delimitar as condutas lesivas com maior precisão.
Impedir é interromper, obstruir, obstar a execução ou o prosseguimento de ato de um procedimento licitatório323. A conduta, portanto, impossibilita a realização de ato de procedimento licitatório. Perturbar consiste em “alterar, mudar, modificar, desarranjar”, “causar embaraço ou perturbação, constituir dificuldade para; embaraçar, atrapalhar, estorvar”324. Diferentemente de impedir, como explica Marçal Justen Filho, “a perturbação corresponde à conduta que, embora não obstaculizando, dificulta a prática de ato de licitação”325.
Não se enquadra na conduta ilícita a simples exteriorização de uma opinião, expressando, por exemplo, insatisfação em relação aos atos de um procedimento licitatório326. Justen Filho dá o exemplo de alguém que tenta impedir ou dificulta o acesso de potenciais interessados ao local onde estão sendo realizados os atos licitatórios327.
Fraudar a realização de um ato licitatório corresponde à utilização de artifício para evitar o cumprimento de requisito legal ou para ocultar o descumprimento das exigências do edital328.
c) Afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo (art.5°, inciso IV, “c”)
Configura-se o ato lesivo quando alguém, em nome ou em interesse de uma pessoa jurídica, elimina ou tenta eliminar um licitante de um certame, utilizando-se de artifícios fraudulentos ou oferecendo vantagem.
O ilícito se aproxima do crime previsto no art. 95 da Lei n° 8.666, de 1993, atualmente disposto no art. 337-K do Código Penal. Porém, o referido tipo penal abrange, como meio de tentar afastar licitante, condutas que empregam violência ou grave ameaça, o que não ocorre no ato lesivo administrativo da Lei Anticorrupção, a qual sujeita o infrator à pena de reclusão, de 3 (três) anos a 5 (cinco) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
d) Fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente (art. 5°, inciso IV, “d”)
A alínea “d” apresenta o ato lesivo de maior abrangência, que abarca uma quantidade considerável de condutas, que, via de regra, já se encontram disciplinadas nas demais hipóteses elencadas pelo legislador. No entanto, esse dispositivo não tem um caráter meramente residual. Isso porque somente nele estão abrangidas as fraudes praticadas na execução de um contrato público.
Nesse ponto, é preciso distinguir os atos praticados por pessoas jurídicas contratadas que configuram apenas inexecução ou descumprimento de cláusulas contratuais daqueles atos que envolvem fraudes. Condutas que se enquadram apenas como descumprimento contratual, tais como, atraso injustificado, execução indevida ou não execução do objeto contratado, submetem-se à responsabilização da Lei n°. 14.133, de 2021.
Por outro lado, na execução de um contrato público, podem ocorrer fraudes que se enquadram no ato lesivo descrito na alínea “d” do inciso IV do art. 5° da Lei Anticorrupção Empresarial. São exemplos:
• Falsificação de assinatura de servidor público, dissimulando a entrega de um bem ou a prestação de um serviço;
• Apresentação à Administração Pública de documento com conteúdo falso para dissimular o cumprimento das exigências para receber o pagamento pela Administração Pública (documentos relativos a regularidade fiscal e trabalhista, atestados de capacidade técnica, diário de obra, etc.);
• Apresentação à Administração Pública de medições ou relatórios de execução do objeto contratado que não correspondem ao que foi efetivamente prestado.
Fraudes na execução contratual podem ter a participação do agente público responsável pela fiscalização e pela gestão dos contratos, além da área responsável pela efetivação dos pagamentos à pessoa jurídica contratada. Portanto, o servidor que atua na área disciplinar, ao verificar situações em que a fiscalização ou a gestão contratual forem deficientes, emitindo, por exemplo, medições que não correspondem à realidade, deve se atentar para a possibilidade de participação de pessoas jurídicas.
e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo (art. 5°, inciso IV, “e”)
A alínea “e” do inciso IV do art. 5° veda uma prática recorrente em contratações públicas. De forma semelhante ao que foi dito relativamente ao inciso III do art. 5°, é comum empresas criarem outras pessoas jurídicas, em nome dos mesmos sócios, de parentes ou de terceiros (“laranjas” ou “testas de ferro”), com intuitos ilícitos diversos: participar de licitações simulando competitividade; apresentar orçamento para compor preços de referência, em geral, com sobrepreço; participar de licitação mesmo já estando impedida ou suspensa de contratar com a Administração Pública em virtude da aplicação de sanções da legislação de contratos e licitações. São as chamadas “empresas de fachada”, como observa Márcio Ribeiro:
Não são poucos os casos em que órgãos de controle, a exemplo da CGU ou TCU, identificam a existência de empresas de fachada, que são criadas com o único e exclusivo intento de macular a lisura do regime de contratação pública e simular uma aparente disputa entre pessoas jurídicas.329
Na Operação Sanguessuga, por exemplo, deflagrada pela Polícia Federal em 2006 em razão de fiscalizações realizadas pelo TCU e pela CGU, constatou-se a participação de um número expressivo de empresas constituídas em nome de “laranjas”, que participavam dos certames para dar aparência de regularidade na aquisição de ambulâncias pelo Ministério da Saúde.
Assim, dentre as diversas condutas irregulares, as empresas de “fachada” simulavam a participação em processos licitatórios com o objetivo de compor número mínimo de participantes e dar cobertura para as empresas beneficiadas330.
f) Obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais (art. 5°, inciso IV, “f”)
Os ilícitos previstos nas alíneas “f” e “g” relacionam-se a condutas de pessoas jurídicas que utilizam meios para alterar os termos e as condições de contrato celebrado com a Administração Pública, para se beneficiar indevidamente. Ao comentar a conduta ilícita prevista na alínea “f” do inciso IV do art. 5º, Modesto Carvalhosa ressalta que a celebração de aditivos é um meio amplamente usado para exacerbar os preços e as condições do contrato e favorecer as pessoas jurídicas contratadas em detrimento do interesse público331. Nesse sentido, segundo o autor, a fraude consiste em desviar as cláusulas contratuais de sua causa e de seu objeto, visando favorecer ilicitamente a pessoa jurídica.
Verifica-se que o ato lesivo descrito na alínea “f” se refere a modificações e prorrogações de contratos celebrados com a Administração Pública. As hipóteses de modificação contratual estão disciplinadas no art. 124 da Lei nº 14.133, de 2021, que podem ocorrer unilateralmente pela administração ou por acordo das partes. Já o art. 105 da mesma Lei dispõe sobre a duração dos contratos e estabelece as condições para as prorrogações dos prazos de início, conclusão e entrega. Exige-se, em qualquer caso, justificativa por escrito e autorização da autoridade competente para celebrar o contrato.
Além disso, qualquer benefício ou vantagem ao contratado deve ser previamente estabelecido no edital, no contrato ou instrumento equivalente. Configura-se o ato lesivo quando a pessoa jurídica concorre para alterações indevidas (não previstas na Lei, no edital ou no contrato) ou para alterações que, embora previstas na Lei, no edital e no contrato, foram efetivadas sem a presença dos requisitos necessários332, cuja observância é obrigatória para o gestor público.
Como exemplo desse ato lesivo, pode-se citar a empresa contratada que solicita à Administração Pública o aditamento do contrato utilizando-se do artifício conhecido como “jogo de planilhas”, comum em contratos de obras. A variável mais comum dessa estratégia consiste em elevar quantitativos de itens que apresentam preços unitários superiores aos de mercado, reduzindo os quantitativos de itens com preços inferiores333. Essa conduta, em tese, enquadra-se também no ato lesivo descrito na alínea “g” do inciso IV, que, como será explicado a seguir, coíbe condutas que visam manipular o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
No Acórdão nº 1.721, de 2016, do Plenário do TCU, a Corte entendeu que, para a caracterização do “jogo de planilha”, não é necessário demonstrar “a intenção de conferir vantagem indevida por parte dos agentes administrativos e dos prepostos da pessoa jurídica contratada”334. Nesse contexto, o TCU alerta que a Administração Pública, no julgamento de uma licitação, deve estar atenta aos valores unitários que compõem cada proposta, evitando-se propostas globais exequíveis, mas com preços unitários inexequíveis ou excessivos:
Há de se distinguir os graus de discrepância existentes entre os custos unitários ofertados pelos licitantes e os custos unitários cotados pela Administração. Em uma licitação onde o objeto é composto pela execução de vários serviços – como é o caso das adutoras do Alto Sertão e Sertaneja –, é evidente que alguns deles apresentarão preços unitários acima dos fixados pela Administração. O ponto, então, é saber a magnitude dessa diferença, e, ainda, os seus reflexos sobre a execução. Nos casos em que a discrepância é razoável, normal, não há de se falar em desclassificação de propostas. Não fosse assim, quer dizer, se qualquer sobrepreço em custos unitários autorizasse a desclassificação das propostas, seria difícil para a Administração contratar obras de grande porte, formadas pela execução de numerosos serviços. É tendo por bases esses casos, os de discrepância razoável em custos unitários, que a Lei nº 8.666/93, por meio dos artigos que citei, não estabelece a obrigatoriedade de desclassificação em virtude de custos unitários.335
Observa-se que, para a caracterização do ilícito da alínea “f”, é necessário que a pessoa jurídica tenha obtido efetivamente a vantagem indevida pretendida com a alteração ou a prorrogação contratual. Esse ato lesivo configura-se, assim, no momento do pagamento irregular efetivado pela Administração Pública.
g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração Pública (art. 5°, inciso IV, “g”)
A Lei Geral de Licitações e Contratos, em interpretação combinada do art. 124, alínea “d”, e do art. 130, estabelece que partes contratantes devem atuar para preservar o equilíbrio econômico-financeiro inicialmente estabelecido. Modesto Carvalhosa esclarece que manipular o equilíbrio econômico-financeiro do contrato consiste em “distorcer os cálculos de custos, os números, as equações aplicáveis a esses mesmos cálculos de custos”336. O autor sustenta que:
Essa manipulação é em si mesma fraude contratual de interesse público, pois utiliza métodos ilícitos dentro do regime e dos sistemas próprios da legislação, dos regulamentos e das cláusulas do contrato administrativo para distorcê-la a favor da pessoa jurídica corrupta.337
Além disso, para Carvalhosa, “a não observância dos requisitos constantes das leis e dos regulamentos aplicáveis é objetivamente considerada como fraude contratual em detrimento do bem jurídico, tutelado pelo Estado”338. Desse modo, a conduta pode se enquadrar também no ato lesivo previsto na alínea “d” do inciso IV do art. 5° da Lei n° 12.846, de 2013.
Esse ato lesivo aproxima-se do descrito na alínea “f” do inciso IV do art. 5°, como salientado anteriormente. O exemplo mencionado, relativo ao jogo de planilhas, se enquadra também no presente ilícito. Caso se constate que alterações contratuais provocaram o desequilíbrio do contrato, caberá a apuração da responsabilidade da contratada que concorreu para a irregularidade.
Outra conduta passível de enquadramento no ato lesivo da alínea “g” é a da empresa contratada que, mediante sucessivos aditamentos, estipula acréscimos e decréscimos de itens de uma obra, de forma a diminuir o desconto oferecido inicialmente à Administração Pública em relação ao preço de referência. Essa diminuição do desconto original torna a execução do contrato injustamente mais onerosa para a Administração Pública. Portanto, o ato lesivo se consuma no momento da celebração dos aditivos que deram causa a essa diminuição, acarretando benefício irregular à contratada.
No ilícito descrito na alínea “g”, não há necessidade de efetivação dos pagamentos irregulares decorrentes da manipulação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Isso porque o ato lesivo, conforme descrito na Lei, configura-se na celebração dos aditivos, e não no momento dos pagamentos irregulares eventualmente realizados pela Administração Pública.
309 GRECO FILHO, Vicente. Dos Crimes da Lei de Licitações. São Paulo: SARAIVA, 1994, p. 46.
310 INTERNATIONAL AUDITING AND ASSURANCE STANDARDS BOARD. International Standard On Auditing 240. 2004. p. 271.
311 CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. Resolução CFC n° 1.203, de 2009.
312 CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Instrução Normativa n° 3, de 9 de junho de 2017.
313 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão n° 48/2014 – Plenário.
314 Art .36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: [...] § 3° As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:
a) Os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;
b) A produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou aprestação de um número, volume ou frequência restrita ou limita da de serviços;
c) A divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;
d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública; [...]
315 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Curitiba: Editora Positivo, 2004.
316 Revogado pelo artigo 193, da Lei nº 14.133, de 2021.
317 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1178.
318 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1178.
319 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1178.
320 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1178.
321 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1178.
322 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. AC- 1041 -06/13-2.
323 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Curitiba: Editora Positivo, 2004.
324 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Curitiba: Editora Positivo, 2004.
325 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1181.
326 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1181.
327 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1181.
328 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P. 1181.
329 RIBEIRO, Márcio de Aguiar. Responsabilização Administrativa de Pessoas Jurídicas à Luz da Lei Anticorrupção Empresarial. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017. P. 170.
330 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TC 015.452/2011-5.
331 CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. SãoPaulo: Editora Revistados Tribunais, 2015, p. 233-234.
332 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. P.1180.
333 Exemplo dessa prática foi examinada no Acórdão nº 1.721/2016, do Plenário do TCU.
334 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão nº 1.721/2016 – Plenário.
335 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão 159/2003 - Plenário.
336 CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.238.
337 CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.239.
338 CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.237.