6.5. TIPIFICAÇÃO SIMULTÂNEA DO ATO LESIVO COM INFRAÇÃO ÀS NORMAS DE LICITAÇÕES E CONTRATOS
A explicação sobre os atos lesivos, no tópico anterior, permite constatar que a Lei Anticorrupção possui uma estreita conexão com a Legislação de Licitações e Contratos, notadamente, a Lei n° 14.133, de 2021. Nesse contexto, compreender as semelhanças e as diferenças entre essas duas bases normativas é indispensável para o adequado enquadramento do ilícito praticado por pessoas jurídicas.
Sabe-se que a atuação administrativa abrange múltiplas formas de relacionamento com pessoas jurídicas, seja no contexto de licitações e contratos, seja na prática de atos unilaterais como autorizações, licenças e permissões. Nesse sentido, a Administração Pública dispõe de diferentes instrumentos legais para a responsabilização de entes privados que praticam ilícitos no âmbito de sua relação com o Poder Público347, dentre as quais destacam-se:
a) Lei n° 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, cuja responsabilização se dá por meio do Processo Administrativo de Responsabilização - PAR, de competência concorrente da CGE, e
b) Lei nº 14.133/2021, Lei nº 13.303/2016, Lei nº 14.167/2002 e Lei nº 13.994/2001, que, ao lado de outros normativos, compõem o que se denomina, neste Manual, de Legislação Geral e específica de Licitações e Contratos, cuja apuração de ilícitos ocorre por meio do Processo Administrativo Punitivo - PAP.
Abaixo, a figura sintetiza os normativos mais comuns aplicáveis aos processos de responsabilização de entes privados:
Cada uma das bases jurídicas do PAR e do PAP possui regramentos próprios quanto à natureza das infrações e das sanções, à sujeição ativa e passiva, aos procedimentos de apuração, à competência para instauração e para aplicação das penalidades, dentre outras especificidades. A tabela a seguir consolida as principais diferenças entre a responsabilização de pessoas jurídicas da Lei n° 12.846, de 2013, do Decreto n° 48.821, de 2024, e a prevista na Legislação Geral de Licitações e Contratos.
Lei Anticorrupção Empresarial | Legislação Geral de de Licitações e Contratos | |
Referências normativas principais
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Lei nº 12.846/2013 e
Decreto nº 48.821/2024
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Lei nº 14.133/2021, Lei nº 13.994/2011 e
Decreto nº 45.902/2012
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Procedimento
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Processo Administrativo de Responsabilização – PAR
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Processo Administrativo Punitivo - PAP
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Finalidade
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Apuração da responsabilidade administrativa pela suposta prática de atos lesivos e aplicação de eventuais sanções estabelecidas na Lei n° 12.846/2013
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Apuração da responsabilidade pela prática de possíveis infrações e aplicação de eventuais sanções próprias da legislação geral de licitações e contratos, previstas nos arts. 155 a 159 da Lei nº 14.133/2021 e no art. 12 da Lei Estadual n° 14.167/2002
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Autoridade competente para instaurar
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Autoridade máxima ou autoridade delegada do órgão/entidade e Controlador-Geral do Estado (competência concorrente).
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Ordenador de Despesas do órgão ou entidade com a qual a pessoa jurídica tenha estabelecido relação.
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É comum a mesma conduta praticada por pessoa jurídica, no âmbito de licitações e contratos, se enquadrar, simultaneamente, em ilícitos descritos na Lei Anticorrupção e na Legislação Geral de Licitações e Contratos. Por isso, a depender da natureza da irregularidade, poderá haver três situações relativas à responsabilização administrativa:
1) Quando a conduta configura somente violação à Legislação Geral de Licitações e Contratos;
2) Quando a conduta caracteriza, simultaneamente, ilícito previsto na Legislação Geral de Licitações e Contratos e ato lesivo definido no art. 5° da Lei Anticorrupção Empresarial;
3) Quando a conduta se enquadra apenas como ato lesivo previsto no art. 5° da Lei Anticorrupção Empresarial.
Deste modo, os atos considerados infrações administrativas pela Lei nº 14.133, de 2021, ou em outras normas de licitações e contratos da Administração Pública, que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 2013, serão apurados e julgados juntos, no mesmo processo, seguindo o procedimento regulamentado no Decreto n° 48.821, de 2024, podendo, inclusive, ensejar várias sanções à pessoa jurídica eventualmente responsabilizada. Vejamos o que dispõe o art. 6º, § 1º, do referido Decreto:
Art. 6º – O ato previsto como infração administrativa às normas de licitações e contratos da Administração Pública que também seja tipificado como ato lesivo na Lei Federal nº 12.846, de 2013, será apurado e julgado conjuntamente, nos mesmos autos, observado o rito procedimental e a autoridade competente definidos neste decreto.
1º - Concluída a apuração de que trata o caput e havendo autoridades distintas competentes para o julgamento, o processo será encaminhado primeiramente àquela de nível hierárquico mais elevado, para que julgue no âmbito de sua competência.
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Por disposição expressa na Lei n° 12.846, de 2013, essas diferentes formas de responsabilização administrativa não implicam dupla imputação pelo mesmo fato348:
Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992; e
II - atos ilícitos alcançados pela Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993349, ou outras normas de licitações e contratos da Administração Pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas– RDC instituído pela Lei n° 12.462, de 4 de agosto de 2011.
Portanto, por determinação legal, a Administração, diante de uma conduta ilícita praticada por uma pessoa jurídica no contexto de uma contratação pública, tem o poder-dever de promover a devida apuração, aplicando, se for o caso, tanto as sanções estabelecidas na Lei n° 12.846, de 2013, como aquelas previstas na Legislação Geral de Licitações e Contratos.
Além disso, a Lei Anticorrupção Empresarial, no dispositivo citado, explicita o princípio da independência das instâncias administrativa, penal e civil, aplicada pacificamente pelo Supremo Tribunal Federal – STF350. Desse modo, um mesmo ato ilícito pode ser objeto de apurações independentes na esfera judicial, por se enquadrarem, por exemplo, em crimes contra a Administração Pública, previsto no Código Penal, ou em ato de improbidade administrativa, disciplinado pela Lei n° 8.429, de 1992.
O esquema abaixo sintetiza o cenário relativo aos diferentes tipos de responsabilização administrativa de pessoas jurídicas no âmbito do Poder Executivo Estadual:
Verifica-se, portanto, a importância de se compreender a possibilidade da ocorrência de tipificação simultânea (ou múltiplo enquadramento) acerca de indícios e evidências da prática de atos ilícitos por entes privados contra a Administração Pública, para melhor orientar e subsidiar os encaminhamentos ou recomendações a serem promovidos por quem conduz ou decide, no âmbito administrativo, os procedimentos de apuração, de avaliação ou de auditagem, dentre outros.
A seguir, serão abordados aspectos da apuração, prescrição, processo administrativo de responsabilização e a aplicação de sanções em face dos atos lesivos da Lei Anticorrupção.
347 Pode-se citar, como exemplos de outros procedimentos para apuração de ilícitos praticados por entes privados, que não serão objeto deste Manual, o processo administrativo sanitário - PAS, disciplinado na Lei Estadual n° 13.317, de 1999, e o processo administrativo de apuração de infração ambiental, previsto no Decreto n° 47.383, de 2018. Menciona-se ainda o processo tributário administrativo - PTA, regulamentado, no âmbito estadual, pelo Decreto n° 44.747, de 2008.
348 O princípio do ne bis in idem, embora não possua previsão constitucional expressa, encontra respaldo em acordos internacionais firmados pelo Brasil, notadamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
349 A Lei 8.666, de 1993, foi completamente revogada em 29/12/2023, depois de coexistir com a Lei 14.133, de 2021, por quase 3 anos.
350 Nesse sentido, cf., por exemplo: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AI681487AgR, Relator(a): Min. DIASTOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 20/11/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG31-01-2013 PUBLIC01-02-2013; MS22899AgR, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 02/04/2003, DJ16-05-2003; MS22656, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 30/06/1997, DJ05-09-1997.