2.2. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS DE RESPONSABILIZAÇÃO
A ordem jurídica, não raras vezes, apresenta diversas formas de proteção a bens e valores caros aos indivíduos e à sociedade. Nessa perspectiva, um mesmo ato pode ser ilícito administrativo, penal e civil (incluindo-se, aqui, o ato de improbidade administrativa).
Nesse sentido, o Estatuto do Servidor dispõe, em seu art. 208, que, “pelo exercício irregular de suas atribuições, o funcionário responde civil, penal e administrativamente”. Cita-se, como exemplo, a agressão de um professor da rede pública estadual a um aluno em ambiente escolar. Esse fato pode configurar, ao mesmo tempo:
III - ato ilícito que acarreta a responsabilidade de reparar o dano (instância civil)20.
Isso ocorre porque cada uma dessas instâncias do direito protege bens jurídicos diferentes. O direito penal protege a integridade física, o direito civil protege o patrimônio (material e moral) e o direito administrativo sancionador protege o bom trato da Administração, o interesse público e a qualidade de seus serviços.
Nessa perspectiva, há uma incidência simultânea e independente das três esferas de responsabilização para o mesmo fato. Caso contrário, ficaria prejudicada a proteção de um ou de outro valor. A Lei n° 869/1952 contempla essa ideia, estabelecendo que “as cominações civis, penais e disciplinares poderão cumular-se, sendo umas e outras independentes entre si, bem assim as instâncias civil, penal e administrativa”. Dispõe também:
Entretanto, essa independência entre as instâncias de responsabilização não é absoluta. As diferentes esferas possuem alguns pontos de contato. Há certos tipos de decisões na seara judicial (principalmente a penal) que influenciam no processo administrativo disciplinar. Isso ocorre nos casos de negativa de autoria e negativa da existência material do fato. Nesse sentido:
A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. Primeira Turma, Sessão Virtual de 8.4.2022 a 20.4.2022.
Nesse sentido, o indivíduo pode ser absolvido criminalmente pela prática de um delito e, pelo mesmo fato que o constituiu, ser punido na seara administrativa, desde que se tenha prova suficiente a justificar a aplicação da penalidade disciplinar. Como exemplo, podemos citar o caso de servidor que, aproveitando a distração de um cidadão que buscou atendimento em sua repartição, subtrai sua carteira no balcão, contendo tão-somente R$50,00 (cinquenta reais).
No presente exemplo, não há que se falar em peculato, pois a carteira do cidadão não estava em sua posse em razão do cargo. Além disso, o servidor não se valeu das facilidades do cargo para tal intento. Nesse caso, o servidor público poderia ser absolvido, na esfera criminal, pela atipicidade material do fato, aplicando-se o princípio da insignificância. No entanto, não há qualquer óbice à aplicação da reprimenda disciplinar, que não se apegaria tão somente ao patrimônio da vítima para sancionar, mas, sobretudo, ao interesse público, moralidade e diversos outros princípios regentes de sua atuação. Além das hipoteses supra, a Lei nº 13.869/201921 (Lei de Abuso de autoridade) trouxe outras hipóteses em que se mitiga essa independência de instâncias, litteris:
Pelo exposto, além da negativa de autoria e inexistência do fato, as justificantes também excepcionam a independência de instâncias. Outro ponto de contato é, decerto, a interlocução e o intercâmbio de informações entre as instâncias. Desta forma, a Administração Pública, tendo ciência da prática de ilícitos que também configuram crime ou improbidade administrativa, deve promover a comunicação às instituições responsáveis, como o Ministério Público22 , e a Polícia Civil23.
Ademais, a Constituição Federal, em seu art. 74, §1°, determina aos responsáveis pelo Controle Interno que comuniquem ao Tribunal de Contas toda e qualquer notícia de irregularidade ou ilegalidade, sob pena de responsabilidade solidária. Tal ordem foi reproduzida pela Constituição Estadual de Minas Gerais, em seu art. 81, parágrafo único:
23 Constituição Federal: Art. 144 [...] § 4° Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Lei 12.830/2013: Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.