2.2. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS DE RESPONSABILIZAÇÃO

A ordem jurídica, não raras vezes, apresenta diversas formas de proteção a bens e valores caros aos indivíduos e à sociedade. Nessa perspectiva, um mesmo ato pode ser ilícito administrativo, penal e civil (incluindo-se, aqui, o ato de improbidade administrativa).

Nesse sentido, o Estatuto do Servidor dispõe, em seu art. 208, que, “pelo exercício irregular de suas atribuições, o funcionário responde civil, penal e administrativamente”. Cita-se, como exemplo, a agressão de um professor da rede pública estadual a um aluno em ambiente escolar. Esse fato pode configurar, ao mesmo tempo:

I - infração disciplinar, prevista no art. 250, inciso IV, da Lei Estadual n° 869/195218, que pune com demissão a bem do serviço público a prática de ofensa física (instância administrativa);
II - crime de lesão corporal de natureza leve previsto no art. 129, caput, do Código Penal19 (instância criminal); e

III - ato ilícito que acarreta a responsabilidade de reparar o dano (instância civil)20.

Isso ocorre porque cada uma dessas instâncias do direito protege bens jurídicos diferentes. O direito penal protege a integridade física, o direito civil protege o patrimônio (material e moral) e o direito administrativo sancionador protege o bom trato da Administração, o interesse público e a qualidade de seus serviços.

Nessa perspectiva, há uma incidência simultânea e independente das três esferas de responsabilização para o mesmo fato. Caso contrário, ficaria prejudicada a proteção de um ou de outro valor. A Lei n° 869/1952 contempla essa ideia, estabelecendo que “as cominações civis, penais e disciplinares poderão cumular-se, sendo umas e outras independentes entre si, bem assim as instâncias civil, penal e administrativa”. Dispõe também:

Art. 273 - A responsabilidade administrativa não exime o funcionário da responsabilidade civil ou criminal que no caso couber, nem o pagamento da indenização a que ficar obrigado o exime da pena disciplinar em que incorrer.

Entretanto, essa independência entre as instâncias de responsabilização não é absoluta. As diferentes esferas possuem alguns pontos de contato. Há certos tipos de decisões na seara judicial (principalmente a penal) que influenciam no processo administrativo disciplinar. Isso ocorre nos casos de negativa de autoria e negativa da existência material do fato. Nesse sentido:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. ALEGADA AFRONTA AO QUE DECIDIDO NO HC 138.837 (Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI). INEXISTÊNCIA. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS INSTÂNCIAS PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. Determinadas condutas podem ser classificadas, simultaneamente, como ilícito penal, civil e administrativo. Nesses casos, poderá haver condenações concomitantes em todas as esferas de apuração, valendo a regra da independência e autonomia entre as instâncias. Há, contudo, hipóteses em que haverá vinculação entre as instâncias, qual seja, a absolvição na esfera penal poderá impedir eventual condenação na esfera civil ou administrativa. Isso ocorrerá em dois casos: a) absolvição penal pela inexistência de fato; ou b) absolvição penal pela negativa de autoria ( CPP, Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I - estar provada a inexistência do fato; IV - estar provado que o réu não concorreu para a infração penal).
2. No julgamento do HC 138.837, embora tenha sido determinado o trancamento de determinada ação penal, a colenda 2ª Turma desta CORTE não o fez em razão de absolvição por inexistência do fato ou de negativa de autoria, o que, em tese, poderia influenciar no julgamento das demais instâncias.
3. Verifica-se que, no caso, o ato administrativo, consubstanciado na aplicação da sanção de cassação de aposentadoria em decorrência de ilícito administrativo, teve como base apuração realizada em PAD no âmbito do Ministério da Economia, em que imputou-se à ora reclamada as condutas do art. 132, IV e XIII, este combinado com o art. 117, IX, todos da Lei 8.112/1990. Desse modo, considerando que a regra vigorante no sistema jurídico brasileiro é de que haja a independência entre as instâncias penal, civil e administrativa, não há se falar em comunicação do que ficou decidido no paradigma apresentado com a decisão tomada em sede administrativa.
4. Ausente qualquer violação ao paradigma invocado, a postulação não passa de simples pedido de revisão do entendimento aplicado na origem, o que confirma a inviabilidade desta ação. Esta CORTE já teve a oportunidade de afirmar que a Reclamação tem escopo bastante específico, não se prestando ao papel de simples substituto de recursos de natureza ordinária ou extraordinária (Rcl 6.880-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Plenário, DJe de 22/2/2013).
5. Recurso de agravo a que se nega provimento.
Acórdão

A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. Primeira Turma, Sessão Virtual de 8.4.2022 a 20.4.2022.

Nesse sentido, o indivíduo pode ser absolvido criminalmente pela prática de um delito e, pelo mesmo fato que o constituiu, ser punido na seara administrativa, desde que se tenha prova suficiente a justificar a aplicação da penalidade disciplinar. Como exemplo, podemos citar o caso de servidor que, aproveitando a distração de um cidadão que buscou atendimento em sua repartição, subtrai sua carteira no balcão, contendo tão-somente R$50,00 (cinquenta reais).

No presente exemplo, não há que se falar em peculato, pois a carteira do cidadão não estava em sua posse em razão do cargo. Além disso, o servidor não se valeu das facilidades do cargo para tal intento. Nesse caso, o servidor público poderia ser absolvido, na esfera criminal, pela atipicidade material do fato, aplicando-se o princípio da insignificância. No entanto, não há qualquer óbice à aplicação da reprimenda disciplinar, que não se apegaria tão somente ao patrimônio da vítima para sancionar, mas, sobretudo, ao interesse público, moralidade e diversos outros princípios regentes de sua atuação. Além das hipoteses supra, a Lei nº 13.869/201921 (Lei de Abuso de autoridade) trouxe outras hipóteses em que se mitiga essa independência de instâncias, litteris:

Art. 8º Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Pelo exposto, além da negativa de autoria e inexistência do fato, as justificantes também excepcionam a independência de instâncias. Outro ponto de contato é, decerto, a interlocução e o intercâmbio de informações entre as instâncias. Desta forma, a Administração Pública, tendo ciência da prática de ilícitos que também configuram crime ou improbidade administrativa, deve promover a comunicação às instituições responsáveis, como o Ministério Público22 , e a Polícia Civil23.

Ademais, a Constituição Federal, em seu art. 74, §1°, determina aos responsáveis pelo Controle Interno que comuniquem ao Tribunal de Contas toda e qualquer notícia de irregularidade ou ilegalidade, sob pena de responsabilidade solidária. Tal ordem foi reproduzida pela Constituição Estadual de Minas Gerais, em seu art. 81, parágrafo único:

Constituição Federal
 

Art. 81 [...] Parágrafo único – Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas, sob pena de responsabilidade solidária.


18 Lei Estadual n° 869/1952. Art. 250. Será aplicada a pena de demissão do serviço público ao funcionário que: [...] IV - praticar, em serviço, ofensas físicas contra funcionários ou particulares, salvo se em legítima defesa;
19 Código Penal. Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano.
20 É sabido que a responsabilidade, in casu, seria objetiva do Estado, no entanto, poderia haver o pleito de regresso em caso de comprovação de dolo e culpa. 
21 Disponível em: . Acesso em: novembro 2021. BRASIL. Lei Federal Nº 13.869, de 05 de setembro de 2019.
22 Constituição Federal: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

23 Constituição Federal: Art. 144 [...] § 4° Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Lei 12.830/2013: Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.