2.4. DEVER DE APURAR E JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE  

O dever de apurar possui previsão expressa no art. 218 da Lei Estadual n° 869/1952, determinando que:

  Art. 218. A autoridade que tiver ciência ou notícia da ocorrência de irregularidades no serviço público é obrigada a promover-lhe a apuração imediata por meio de sumários, inquérito ou processo administrativo. 

 

O dispositivo possui fundamento constitucional, extraído da indisponibilidade do interesse público, já tratado neste Manual. Se o interesse é público e o gestor é seu mero administrador, não cabe a ele um juízo de seletividade quanto às transgressões disciplinares que irá, ou não, apurar. A autoridade deve, assim, atuar em todos os casos em que se impõe a aplicação do regime disciplinar.

A primeira questão a ser abordada em relação ao art. 218 é sobre quem é a autoridade a que o dispositivo se refere. Para tanto, devemos nos valer de interpretação lógico-sistemática, considerando a topografia do dispositivo no Estatuto. A resposta está no artigo subsequente, que assim dispõe:

Art. 219 - São competentes para determinar a instauração do processo administrativo os Secretários de Estado e os Diretores de Departamentos diretamente subordinados ao Governador do Estado.

Nesse contexto, a autoridade que determinará a apuração da irregularidade é aquela competente para deflagrar o processo administrativo disciplinar. Como será visto adiante, uma interpretação atualizada do art. 219 permite concluir que o rol de autoridades competentes para instaurar o processo é maior do que o que foi originariamente concebido pela Lei.

Tal premissa é relevante para o estudo da prescrição, que tem início com a ciência do fato pela Administração Pública. Ora, o prazo prescricional começa a contar da ciência da irregularidade pela Administração Pública, que, de imediato, precisa promover a apuração. Logo, considerando a inexistência física da Administração Pública e a teoria da imputação volitiva (teoria do órgão), a ciência dos fatos por parte da Administração Pública se dá no momento do conhecimento dos fatos irregulares pela autoridade competente para apurá-los, que são aquelas do art. 219 e as demais que serão tratadas neste Manual. Essa é a conclusão extraída da leitura combinada dos arts. 218 e 219 da Lei Estadual n° 869/1952.

Outro aspecto relevante diz respeito à forma pela qual a autoridade toma ciência da irregularidade – se de forma direta ou provocada. A ciência é direta quando, no exercício natural de suas  atividades funcionais, a autoridade detecta a prática de transgressão por um de seus servidores, como, por exemplo, quando o gestor máximo de uma autarquia descobre, ao analisar a folha de ponto de um de seus subordinados, a prática de inassiduidade.

No entanto, a regra é a ciência provocada, em que a notícia da irregularidade chega até a autoridade, através de denúncia (identificada ou anônima), intercâmbio informacional de outro órgão, informações veiculadas na mídia ou qualquer outro meio que o faça conhecer a matéria. Inclui-se, aqui, o dever que incumbe aos próprios servidores de “levar ao conhecimento da autoridade superior irregularidade de que tiver tenha ciência em razão do cargo”. 

Art. 216 - São deveres do funcionário:
[...]

VIII - levar ao conhecimento da autoridade superior irregularidade de que tiver ciência em razão do cargo;

Por outro lado, o servidor deve ser cauteloso e responsável ao denunciar irregularidades, evitando-se a instauração de procedimentos disciplinares indevidos, precipitados e temerários. Esse cuidado se aplica com maior intensidade ao servidor de controle interno ao qual incumbe recomendar à autoridade a instauração, ou não, de sindicância ou processo, em sede de juízo de admissibilidade.

Isso porque a instauração de um PAD é, por si só, um mal para o servidor processado, podendo afetar em sua vida pessoal e profissional. Em virtude da gravidade e da reprovabilidade da conduta em questão, a Lei nº 13.869/2019 tipificou a instauração leviana de procedimentos, inclusive, investigatórios:

Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.

Além disso, o servidor que responde a processo administrativo disciplinar fica impedido de exonerarse ou afastar-se por motivo particular dentro do período legal de duração do PAD, que no âmbito do Estado de Minas Gerais, é de 150 (cento e cinquenta) dias. Sobre esse ponto, foi elaborada Súmula Administrativa com o seguinte teor:

(Publicada no Diário do Executivo de Minas Gerais de 28/04/2021, página 2). O processo administrativo disciplinar que puder culminar na aplicação da pena de demissão e estiver pendente de conclusão por motivos alheios ao processado, não obsta a que seja deferido o pedido de exoneração por ele formulado, após superado o prazo máximo de 150 dias do início do processo, nos termos do art. 251, parágrafo único c/c arts. 220, §2º, e 223, todos da Lei estadual nº 869/52.

Por essas razões, somadas ainda ao alto custo referente à instrumentalização do PAD, o juízo de admissibilidade é essencial à atividade correcional, sendo determinante a análise prévia da existência da materialidade, dos indícios de autoria e, se possível, das circunstâncias que gravitam a temática.

Nesse contexto, a realização do juízo ou exame de admissibilidade é considerada a fase que antecede a decisão da autoridade competente responsável por avaliar se a denúncia recebida deve ser admitida ou não para apuração, ou seja, se é cabível instaurar o procedimento administrativo ou arquivar a representação ou denúncia.

O juízo de admissibilidade é realizado pela autoridade competente para instaurar o processo. Essa decisão é subsidiada pela análise prévia, formalizada por meio de um parecer preliminar. Tratase, portanto, de documento de natureza opinativa, que não vincula a decisão da autoridade instauradora.

Dessa forma, o exame de admissibilidade é um elemento de instrução para a decisão a ser tomada à vista da vinculação, pertinência e viabilidade de se determinar a instauração do procedimento disciplinar e de se buscar a possível responsabilização do agente público.

Ainda que em caráter preliminar, o juízo de admissibilidade irá delimitar a existência de indícios de materialidade e de autoria de suposta irregularidade funcional cometida no exercício de cargo público ou em ato a ele associado.

Caso não seja possível, no juízo de admissibilidade, determinar a autoria e a materialidade de possíveis infrações disciplinares, a Administração Pública buscará esses elementos através de um procedimento investigativo, que poderá subsidiar a instauração e instrução de um PAD.

Ressalta-se que a denúncia ou representação que não contiver os requisitos para sua apuração será motivadamente arquivada, após o juízo ou exame de admissibilidade, eis que não é razoável movimentar a máquina estatal para apurar notícia vaga, abstrata ou genérica.

Portanto, no juízo de admissibilidade, a autoridade pode decidir pelo(a):

arquivamento da denúncia/representação;
instauração de procedimento investigativo (investigação preliminar ou sindicância);
instauração de processo administrativo disciplinar; ou

proposta de compromisso de ajustamento disciplinar.

Na seara do juízo de admissibilidade, institucionalizou-se documento denominado Matriz de Admissibilidade Correcional, que é um instrumento que sintetiza os elementos de informação relevantes, de forma objetiva, em um quadro com colunas e linhas, associando o suposto agente público à conduta em tese irregular e ao possível enquadramento legal, que servirá de apoio para subsidiar a decisão da autoridade competente.

Observa-se, portanto, que o juízo de admissibilidade exerce mais do que uma função preparatória para a instauração de procedimento disciplinar ou arquivamento. Trata-se de uma proteção do servidor e, sobretudo, do interesse público, pois a instauração de um processo de forma indevida atinge não apenas a imagem do processado, como também a imagem da Administração, levando-a ao descrédito por parte da sociedade, ainda que momentâneo e parcial.

Por outro lado, essa análise prévia não busca exaurir o tema, pois, se assim fosse, substituiria o processo administrativo no que tange à certeza dos fatos. Antes disso, uma análise preliminar consiste em um juízo sumário e provisório acerca dos elementos de autoria e materialidade, que serão devidamente apurados no devido processo legal.