2.6.1.1. DESCUMPRIMENTO DE DEVERES FUNCIONAIS (ART. 216 C/C ART. 245)
Passa-se a analisar os ilícitos em espécie, iniciando-se pelas infrações correspondentes ao descumprimento de deveres funcionais. Em seguida, serão apresentados aspectos relativos às proibições, à reincidência e aos demais ilícitos sujeitos às penas de repreensão e suspensão.
a) Inassiduidade (art. 216, inciso I, c/c art. 245)
Art. 216 - São deveres do funcionário:
I - assiduidade;
Art. 245 - A pena de repreensão será aplicada por escrito em caso de desobediência ou falta de cumprimento de deveres.
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
A inassiduidade consiste no cometimento de faltas integrais e injustificadas ao serviço, em quantitativo inferior ou igual a 30 (trinta) dias consecutivos ou a 90 (noventa) dias intercalados dentro do mesmo ano civil (janeiro a dezembro). Isso decorre da interpretação do inciso II do art. 249 da Lei nº 869/1952, referente ao abandono de cargo (mais de trinta dias consecutivos ou mais de noventa dias não consecutivos dentro do mesmo ano civil). A Instrução de Serviço CGE/SCA nº 04/2014 define a inassiduidade como:
a situação em que o servidor se ausenta, frequentemente e sem justificativa, ao serviço, descumprindo o dever previsto no art. 216, inciso I, da Lei Estadual nº 869, de 5 de janeiro de 1952, extrapolando os limites da razoabilidade, em prejuízo do interesse público.
Quanto à contagem das faltas, deve-se, em regra, considerar apenas os dias úteis, ou seja, os dias em que houver expediente na unidade de exercício do servidor. Há exceção, no entanto, no que diz respeito aos plantonistas, conforme dispõe o art. 7º da mencionada instrução de serviço:
Art. 7º. Para os fins de contagem de faltas, consideram-se apenas os dias em que houver expediente na unidade de exercício do servidor.
Parágrafo único. A regra deste artigo não se aplica ao servidor plantonista, devendo-se considerar também como faltas, além dos dias faltosos, os dias de folgas, os feriados, pontos facultativos, sábados e domingos subsequentes aos plantões dos quais tenha se ausentado.
O Decreto Estadual n° 48.348, de 10/01/2022, que estabelece normas gerais para o cumprimento da jornada de trabalho e a apuração de frequência dos servidores públicos civis da Administração Pública, prescreve que:
Art. 3º – Para fins do disposto neste decreto, considera-se:
I – jornada de trabalho: período no qual o servidor deve permanecer à disposição do órgão ou da entidade em que estiver em exercício;
(...)
Art. 8º – Os regimes de cumprimento da jornada de trabalho que podem ser praticados no âmbito dos órgãos e das entidades da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo são:
I – controle diário;
II – plantão, nas modalidades de escala fixa ou escala variável;
III – teletrabalho, nas modalidades de execução integral ou de execução parcial.
(...)
Art. 9º – O regime de cumprimento da jornada de trabalho de controle diário caracteriza-se por:
I – regularidade e previsibilidade dos dias e horários definidos para o cumprimento da jornada de trabalho ao longo da semana, conforme previsão estabelecida no PHT do servidor;
(...)
VII – folga em dias de feriado e ponto facultativo, ressalvada a hipótese de funcionamento regular do órgão ou da entidade e assegurado o mínimo de um dia de descanso semanal remunerado.
(...)
Art. 10 – O regime de cumprimento da jornada de trabalho de plantão aplica-se aos serviços cuja prestação, por sua natureza, não pode ser interrompida, ressalvado o direito ao descanso e à
alimentação.
A Resolução SEPLAG n° 35/2023, que dispõe sobre o cumprimento da jornada de trabalho e a apuração de frequência dos servidores públicos, traz conceitos referentes à jornada de trabalho e seu devido cumprimento, em síntese reproduzindo o exposto no mencionado decreto, senão vejamos:
Art. 1º - Para fins do disposto nesta resolução considera-se:
I - jornada de trabalho: período no qual o servidor deve permanecer à disposição do órgão ou da entidade em que estiver em exercício;
(...)
Art. 10 - A jornada de trabalho na Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo será cumprida entre 7h e 20h, de segunda a sexta-feira.
§1º - O cumprimento de jornadas no regime de plantão será objeto de resolução conjunta entre o órgão ou entidade e a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão - Seplag, conforme dispõe o art.
22, II do Decreto nº 48.348, de 2022.
(...)
Art. 30 - Ponto facultativo é o dia útil no qual o cumprimento da jornada de trabalho é dispensado pelo Governador.
§ 1º Os servidores que desempenhem atividades relacionadas às ressalvas previstas no ato instituidor do ponto facultativo deverão cumprir sua jornada de trabalho regular, não se submetendo ao processo de convocação disposto neste capítulo.
§ 2º Os servidores que cumpram sua jornada de trabalho em regime de plantão, conforme escala previamente definida, em regra, não gozam de ponto facultativo.
Nesse contexto, deve-se distinguir a inassiduidade da impontualidade e do abandono de cargo:
A inassiduidade necessariamente está contida no abandono de cargo, sendo o primeiro ilícito um meio para a execução do segundo. Quem incorre em abandono de cargo é, por óbvio, inassíduo. Em outras palavras, o abandono de cargo configura-se por meio da prática de sucessivas faltas integrais, isto é, da inassiduidade. Trata-se de conflito aparente de normas, resolvido pelo chamado critério da consunção: a inassiduidade, como ilícito meio, é absorvida pelo abandono de cargo, que é, nessa situação, o ilícito fim, principal. Como consequência, o servidor será punido somente pelo abandono de cargo.
Como já afirmado, o dever de assiduidade visa proteger a continuidade do serviço público, pois o interesse público não é compatível com a interrupção injustificada dos meios para persegui-lo.
As ausências do servidor são provadas, precipuamente, pelo controle de frequência (“folha de ponto”). No entanto, não se trata de prova tarifada, isto é, a “folha de ponto” não é a única fonte de prova do ilícito. Isso porque podem ocorrer situações que prejudiquem ou neguem a fidedignidade do controle de frequência, tais como: extravio da “folha de ponto”, preenchimento indevido, conluio entre o servidor e o superior hierárquico, e prática irregular de “ponto britânico” (quando as “folhas de ponto” apresentam invariavelmente os mesmos horários de entrada e de saída).
Nesses casos, deve-se recorrer a provas como a declaração da chefia, provas testemunhais e demais instrumentos probatórios admitidos em direito, que poderão suprir a falta da “folha de ponto” e justificar a aplicação de sanção pela inassiduidade.
Pode ocorrer a situação em que o servidor, no curso do processo, alega que suas ausências são justificadas ou justificáveis, atacando a existência do elemento normativo necessário à caracterização do ilícito (faltas injustificadas). Nesse caso, caberá ao processado demonstrar o seu álibi, isto é, o argumento de fato que justificaria suas faltas, considerando-se o art. 156 do Código de Processo Penal47, aplicado subsidiariamente ao PAD, e a pacífica jurisprudência envolvendo a matéria. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PONTOS NÃO ATACADOS DA DECISÃO AGRAVADA.
SÚMULA N. 182 DO STJ. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. POSSIBILIDADE. ART. 557 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CUMPRE AO RÉU O ÔNUS DE COMPROVAR O ÁLIBI LEVANTADO PELA DEFESA. ART.
156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXAME QUANTO À RECEPÇÃO DE DISPOSITIVOS LEGAIS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DO STF. CRIME DE MOEDA FALSA. ART. 289 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
[...]
3. Não desrespeita a regra da distribuição do ônus da prova a sentença que afasta tese defensiva de negativa de autoria por não ter a defesa comprovado o álibi levantado. AgRg no RECURSO ESPECIAL N° 1.367.491 - PR (2013/0044002-4).
Orientação para a desimetria da penalidade de inassiduidade | |||
Situação de Faltas | Dias faltosos | Penalidade | Forma de desimetria da pena |
Servidor faltoso com justificativa, mas sem amparo legal. | Até 10 dias | Arquivamento | Não se aplica |
De 11 a 30 dias | Repreensão | Não se aplica | |
De 31 a 89 dias | Suspensão | A cada dois dias de falta - um dia de suspensão, limitado a 90 dias de suspensão | |
Servidor com dolo, má-fé ou reincidente. | Qualquer número de dias | Suspensão | A cada dia de falta - um dia de suspensão, limitado a 90 dias de suspensão |
Dolo específico de programar faltas para evitar a configuração do abandono de cargo | Suspensão | A cada dia de falta - dois dias de suspensão, limitado a 90 dias de suspensão |
Por “servidor faltoso com justificativa, mas sem amparo legal”, entende-se aquele que apresenta e demonstra uma justificativa de fato, mas não de direito, isto é, que não possui o condão legal de afastar o ilícito. Tem-se, como exemplo, o servidor que falta 40 (quarenta) dias não consecutivos para dar assistência a um sobrinho operado, que também conta com a assistência de seus genitores. Nesse caso, não há qualquer disposição legal que justifique as faltas, e por haver, aparentemente, dolo (nesse caso, a intenção de faltar ao trabalho), é possível a aplicação de suspensão.
No entanto, se devidamente comprovada pelo processado uma justificativa fática (na hipótese, o fato de o servidor ter acompanhado o sobrinho operado), a comissão pode considerá-la como uma causa de diminuição da pena, sugerindo uma suspensão menor. Ressalta-se a possibilidade de ocorrência de inassiduidade bienal, trienal, quadrienal e assim por diante. São os casos em que as faltas ocorrem por mais de um ano. Nesses casos, somam-se as faltas de todos esses anos e as divide pelos anos em que houve a ocorrência.
Considere-se o exemplo de um servidor que teve 60 (sessenta) faltas não consecutivas em 2023 e 40 (quarenta) em 2024, tendo o total de 100 (cem) faltas em dois anos. Nesse caso, dividem-se as faltas totais pelos anos faltosos (100 dividido por 2), chegando-se à média de 50 dias de faltas por ano. Utilizando-se a tabela da dosimetria acima, se houver dolo, sugere-se a penalidade de suspensão de 50 (cinquenta) dias.
Isso porque, como regra, a inassiduidade diluída em mais de um ano possui menor potencial danoso, pois, embora também fira o interesse público, o faz em menor grau. Ou seja, se um professor falta 100 (cem) dias em um ano - considerando que o ano letivo possui, em média, 200 (duzentos) dias –, em tese, fere o interesse público em grau maior do que se tivesse a mesma quantidade de faltas diluídas em dois anos.
b) Impontualidade (art. 216, inciso II, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Como já visto, a impontualidade é a transgressão disciplinar consistente em ausências parciais, intermitentes ou incompletas ao serviço, sendo esta sua diferença em relação à inassiduidade. Trata-se do servidor que chega atrasado, que sai mais cedo ou que se retira do ambiente funcional durante a jornada de trabalho. Enfim, trata-se do servidor que não cumpre integralmente sua jornada de trabalho.
O tratamento disciplinar deste ilícito se assemelha com o da inassiduidade. No entanto, a impontualidade é tratada com menor grau de reprovabilidade, pois, diferentemente da inassiduidade, o servidor chega a comparecer ao serviço.
A impontualidade jamais se converterá em inassiduidade. Isto é, não se somam as horas faltosas para transformá-las em dias faltosos, haja vista não haver previsão legal para tanto. O tratamento dos ilícitos é diverso porque a gravidade da conduta praticada é diversa.
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Se o legislador quisesse estabelecer a possibilidade de conversão da impontualidade em inassiduidade, o teria feito de forma expressa, como no caso da inassiduidade, que se transforma em abandono de cargo, a depender dos dias de falta. Frise-se que a Administração Pública se subordina ao princípio da legalidade, só podendo fazer o que a lei determina ou permite.
Observa-se ainda que, se fosse permitido que a impontualidade se transformasse em inassiduidade, aquele ilícito se esvaziaria, pois nunca seria aplicado quando houvesse mais de oito horas de ausência. Como já afirmado, a conduta praticada é diferente, por isso, o tratamento disciplinar deve ser diverso.
c) Falta de discrição (art. 216, inciso III, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Discrição é qualidade daquilo que é discreto, que guarda segredos. Isso porque, não raras vezes, o servidor público tem acesso a informações privadas de outros servidores e de particulares, que merecem proteção em razão do direito fundamental de privacidade (direitos de intimidade, vida privada, imagem e honra).
Assim, um servidor do IPSEMG pode ter acesso à causa de uma aposentadoria por invalidez de um servidor, um policial pode ter acesso aos Registros de Evento de Defesa Social (Boletim de Ocorrência) de um particular, o agente de controle interno pode ter acesso ao processo administrativo disciplinar instaurado contra alguém.
Esses servidores não podem divulgar tais informações a terceiros, ainda que sem a intenção de prejudicar o Estado ou alguém em particular. Aliás, esse ilícito somente é punível com pena de repreensão se não houver essa intenção. Caso haja o dolo de prejudicar alguém ou o Estado, cabe a penalidade de demissão a bem do serviço público, nos termos do art. 250, inciso III, do Estatuto do Servidor:
III - revelar segredos de que tenha conhecimento em razão do cargo ou função, desde que o faça dolosamente e com prejuízo para o Estado ou particulares;
Nota-se que essa conduta dolosa também constitui ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, inciso III, da Lei n° 8.429/199248.
d) Falta de urbanidade (art. 216, inciso IV, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Urbanidade, assim como outros deveres previstos no Estatuto do Servidor (“lealdade”, por exemplo), é um conceito jurídico indeterminado, isto é, depende de complementação do intérprete/aplicador. Entretanto, esse tipo de conceito não é incompatível com a ordem jurídica atual, pois é característica do regime administrativo disciplinar a adoção de tipos abertos, mormente na definição dos deveres dos servidores. Sobre essa característica do Direito Administrativo Sancionador e sua diferença em relação ao Direito Penal, Carvalho Filho explica que49:
No Direito Penal, o legislador utilizou o sistema da rígida tipicidade, delineando cada conduta ilícita e a sanção respectiva. O mesmo não sucede no campo disciplinar. Aqui a lei limita-se, como regra, a enumerar os deveres e as obrigações funcionais e, ainda, as sanções, sem, contudo, uni-los de forma discriminada, o que afasta o sistema da rígida tipicidade.
É possível, no entanto, explicitar o possível significado do termo, a fim de orientar sua aplicação ao caso concreto. A urbanidade consiste no dever genérico orientador da postura do agente público, que deve atuar com respeito, presteza, boa-fé, cordialidade e as demais regras básicas que determinam a boa vida em sociedade. A urbanidade considera o povo50 verdadeiro titular da coisa pública e real cliente da Administração.
No entanto, o dever de urbanidade não deve ser exercido apenas em relação ao particular. Os agentes públicos também compõem o elemento subjetivo do Estado, sendo destinatários das atividades públicas. Por isso, além do povo, deve o servidor respeitar aqueles que com ele trabalha, de modo que as animosidades não prejudiquem a qualidade do serviço público.
Ressalta-se que o objeto da norma é o bom trato e respeito entre as pessoas no serviço público. Laços mais fortes, como os de amizade, são de foro íntimo dos servidores e não sofrem intervenções por parte do Estado. A urbanidade é, em verdade, regra básica de conduta, em busca do interesse público.
Vale dizer que a falta de urbanidade, assim como o descumprimento de todos os demais deveres, é de natureza subsidiária, aplicando-se apenas quando não for mais grave o resultado. Portanto, se a falta de urbanidade se materializar em ofensa física, o ilícito será o do 250, inciso IV, que desafia a penalidade de demissão a bem do serviço público. Contudo, como já mencionado, a portaria exordial deve contemplar ambas as capitulações, haja vista que, não se provando o ilícito mais grave (ofensa física), poder-se-ia apenar pelo que lhe é subsidiário (falta de urbanidade).
e) Falta de lealdade à instituição (art. 216, inciso V, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
A lealdade, assim como a urbanidade, é um conceito jurídico indeterminado, também denominado “tipo aberto”, pois depende de complementação valorativa daquele que analisa a situação concreta.
Ser desleal é trair o interesse público, ir contra as finalidades da atuação administrativa. O ilícito abarca uma quantidade considerável de condutas. O professor que, por exemplo, deixa de lecionar a disciplina para, no lugar, debater sobre questões estranhas à matéria ou à escola, trai o interesse público. O mesmo ocorre com o servidor que mercancia suas funções, recebendo valores ou benefícios pelo exercício regular de seu cargo.
A identificação de tal ilícito se dá no caso concreto e, não raras vezes, é cumulada com a prática de outro ilícito, de natureza mais grave. Nessas hipóteses, funcionará como reforço argumentativo para a aplicação da sanção mais gravosa, constando no despacho decisório para robustecer a decisão.
f) Inobservância de normas (art. 216, inciso VI, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Parte da doutrina administrativista diferencia, quando da análise dos poderes da Administração Pública, os conceitos de “poder normativo” e “poder regulamentar”. Alguns autores definem “poder regulamentar” como a atribuição para a elaboração de decretos, executivos ou autônomos, ao passo que o poder normativo seria mais abrangente, comportando os demais atos normativos que são elaborados no âmbito da Administração Pública, como as Instruções Normativas e Resoluções.
Certamente, a Lei Estadual n° 869/1952, ao definir como dever a observância das “normas legais e regulamentares”, não se limitou à Lei e ao Decreto, mas, sim, a todos os atos normativos exarados pela Administração Pública. Trata-se de uma decorrência da compreensão do princípio da legalidade como princípio da juridicidade, que, como já mencionado, determina a observância não apenas da lei em sentido estrito, mas de todo “bloco de legalidade”, que rege a atuação administrativa.
Ao enquadrar a conduta neste ilícito, o intérprete deve indicar especificamente qual norma foi descumprida, como um elemento indispensável para a caracterização da infração disciplinar.
g) Desobediência às ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais (art. 216, inciso VII, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Trata-se, aqui, de manifestação do poder hierárquico, essencial para a organização e estruturação das atividades públicas, de modo a conferir, à atuação estatal, coerência e unidade, mormente no alcance dos índices de desempenho exigidos pela gestão, na satisfação adequada do serviço público e na concreta realização de políticas públicas.
A ordem superior, como regra, se apresenta com as formalidades de estilo, consubstanciadas, portanto, em documento público ou em instrumento institucional de comunicação (ofício, memorando, ordem de serviço, e-mail, etc).
A ordem, para revestir-se de legalidade, deve, em primeiro lugar, ser emanada por autoridade competente para tal. Caso contrário, a ordem é ilegal, o que dirime51 a responsabilidade do servidor que lhe negar aplicação. A ilegalidade da ordem também leva à responsabilização da autoridade que a proferiu, haja vista que descumpriu, no mínimo, as normas que definem suas atribuições.
Sendo a ordem convalidada (ratificação) pela autoridade dotada normativamente de competência, passa a obrigar o servidor, que deverá cumpri-la sob pena de incidência do ilícito em crivo. A parte final do inciso VII apresenta uma causa de exclusão de culpabilidade. Isso porque ordens ilegais não devem ser cumpridas no contexto de um Estado Democrático de Direito, que é regido por um ordenamento jurídico pré-definido e, sobretudo, por uma Constituição. Dessa forma, como característica essencial da democracia, o mesmo Estado que elabora as leis também se vincula a elas, extirpando o poder ilimitado que vigorava no período absolutista.
Ademais, pelo princípio da legalidade, já tratado neste Manual no tópico 2.1, a Administração Pública só pode atuar quando determinado ou permitido pela lei. Assim, se o Diretor do Presídio determinar a um de seus agentes que torture o preso para que ele confesse a posse de um aparelho celular (falta grave, nos termos do art. 50 da Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal), a ordem deve ser imediatamente rejeitada pelo agente, sob pena de responsabilização caso a pratique.
h) Omissão em noticiar irregularidade de que tenha ciência (art. 216, inciso VIII, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Trata-se do dever de todo servidor de zelar pelo interesse público, despindo-se de aspectos egoísticos ou individuais em prol do bem coletivo. O ilícito relaciona-se com a obrigação da autoridade de promover a apuração das irregularidades de que tenha conhecimento, nos termos do art. 218, já comentado.
Em uma interpretação combinada dos dispositivos, verifica-se que todo servidor – e não apenas aquele que tem competência para instaurar procedimentos de apuração de ilícitos - tem o dever de noticiar irregularidades ocorridas no âmbito do serviço público. A omissão enseja a aplicação da pena de repreensão e, caso haja dolo ou má-fé, suspensão.
Este ilícito não se aplica ao próprio servidor transgressor pois, nesse caso, incide o direito à não autoincriminação52 e o direito ao silêncio53. Como consequência, não lhe é exigível relatar irregularidade de que seja o próprio autor, coautor ou partícipe. Além disso, a análise do caso concreto se revela imperiosa para a conclusão sobre a prática do ilícito, haja vista a possibilidade de existência de condições que poderiam afastá-lo, como, por exemplo, o desconhecimento de que a prática configura ilícito disciplinar ou, ainda, a ameaça, por parte de sua chefia, de represália grave (o que poderia configurar coação moral irresistível, e, por isso, excludente da culpabilidade).
i) Falta de zelo e conservação do material confiado (art. 216, inciso IX, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Trata-se de conduta culposa, isto é, sem a intenção direcionada à destruição do material da Administração que esteja sob sua guarda. Este ilícito, quando doloso, pode configurar a infração tipificada no art. 250, inciso V, que pune com demissão a bem do serviço público a “lesão aos cofres públicos e a dilapidação do patrimônio do Estado”.
Nesse ponto, questiona-se: sempre que houver a falta de zelo ou a não conservação do material de forma dolosa haveria dilapidação do patrimônio, sujeita à penalidade de demissão a bem do serviço público? Essa não parece ser a melhor conclusão. Isso porque é possível identificar três ilícitos distintos:
• dilapidação do patrimônio do Estado (art. 250, inciso V).
O servidor que, por inobservância do dever objetivo de cuidado, quebra ou estraga algum material a ele confiado (como um computador, por exemplo), responde pela falta de zelo de forma culposa, estando sujeito à pena de repreensão. Ressalta-se que a culpa deve ser demonstrada, sendo indispensável a comprovação da imprudência, negligência ou imperícia.
Lado outro, o servidor pode não conservar ou desperdiçar o material que lhe é confiado de forma dolosa, o que justificaria a penalidade de suspensão. É o caso do servidor que, em um momento de ira, destrói o mouse de seu computador, sem causar nenhum resultado mais gravoso.
Por fim, para desafiar a demissão a bem do serviço público, a conduta do servidor deve ser capaz de dilapidar o patrimônio do Estado. Dilapidar é destruir, arruinar, estragar, gastar em excesso, extinguir54. A conduta proibida no inciso V do art. 250 não é dilapidar determinado bem, mas sim o patrimônio do Estado.
Destruir um mouse não dilapida o patrimônio do Estado, mas a quebra de vários computadores causa um dano significativo ao patrimônio do Estado, pois corresponde a uma conduta tendente a destruí-lo. Aliás, o gasto excessivo também corresponde à irregularidade do art. 250, inciso V, bem como a aquisição de bens inúteis ou em quantitativo maior do que o necessário.
j) Não providenciar para que estejam em ordem o assentamento individual e sua declaração de família (art. 216, inciso X, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
A Administração Pública deve manter atualizadas informações relativas aos servidores públicos, para fins fiscais e cadastrais. Assim, o servidor é obrigado a informar à Diretoria de Recursos Humanos ou unidade equivalente quando houver alterações substanciais em sua vida privada, tais como casamento, separação, divórcio, mudança de endereço residencial, etc.
Nesse sentido, os arts. 155 e 166 da Lei n° 869/1952 dispõem que o servidor, embora possa gozar férias e licença onde lhe convier, deve comunicar seu endereço eventual à sua chefia imediata. O Estatuto do Servidor prevê situações que se relacionam com o ilícito em análise, tais como o direito de faltar ao serviço por motivo de casamento, falecimento de cônjuge, filho, pais ou irmãos (art. 201) e a licença por motivo de doença em pessoa da família (art. 176). Aliás, não raras vezes ocorre a situação em que o servidor em abandono de cargo não é encontrado por não atualizar seus registros funcionais.
k) Não atender prontamente às requisições da Fazenda Pública e à expedição de certidões requeridas para a defesa de direito (art. 216, inciso XI, c/c art. 245)
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Esse ilícito possui maior abrangência nos dias atuais do que em épocas passadas. Isso porque diversas leis e a própria Constituição dispuseram sobre a figura da “requisição”, que tem natureza de ordem, imposição. A exemplo, a Constituição Federal, em seu art. 129, inciso VI, confere ao Ministério Público a função institucional de requisitar informações e documentos referentes a processos administrativos de sua competência.55
Só requisita quem tem competência, e a competência é oriunda da Lei. Logo, o descumprimento de uma requisição importará também em descumprimento de normas, ilícito já estudado neste manual. A alínea b do inciso XI do art. 216 remete a uma das vertentes do direito de petição, previsto no art. 5°, inciso XXXIV, da Constituição Federal, que assim prevê:
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
O direito à informação possui uma relevância especial nos dias de hoje, haja vista o direito fundamental à informação, o princípio da publicidade e as diversas leis que disciplinam a matéria. Esses aspectos devem ser levados em consideração na interpretação/aplicação desse dever funcional.
55 Art. 129, inciso VI: expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.