2.6.1.2. PROIBIÇÕES, REINCIDÊNCIA EM INFRAÇÃO PUNIDA COM REPREENSÃO, FALTA GRAVE E OUTROS ILÍCITOS DE LEVE E MÉDIA GRAVIDADE
As proibições estão previstas no art. 217, da Lei Estadual n° 869/1952, que, em interpretação combinada com o art. 246, impõe ao infrator a penalidade de suspensão.
a) Crítica depreciativa ao serviço público (art. 217, inciso I, c/c art. 246, inciso III)
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
A Lei impõe meios especiais para a prática dessa infração. Trata-se, assim, de manifestação de conteúdo aviltante, pejorativo e ofensivo por parte de servidor público em documentos oficiais, quais sejam, em informações, pareceres ou despachos. Assim, o ilícito é praticado pelo servidor no exercício de sua função.
É claro que a infração não se configura em críticas doutrinárias ou acadêmicas ou, ainda, quando há divergência ponderada de entendimento em documentos oficiais. Para fins interpretativos, pode-se tomar como parâmetro o art. 142 do Código Penal, relativo aos crimes de injúria e difamação:
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Nesse contexto, o chamado conceito desfavorável, isto é, um juízo de valor negativo em relação a determinado ato administrativo, consiste em prerrogativa funcional. Por isso, não configura injúria ou difamação, desde que exercidos nos limites necessários ao adequado exercício de sua função. Se o servidor agir com excesso, poderá responder por esses crimes.
A ideia se aplica ao ilícito disciplinar. No exercício de suas atribuições, o servidor público realiza a análise de determinados fatos e, em muitos casos, expede conceito desfavorável, emitindo juízo de valor que denote reprovação. Isso ocorre especialmente em relação aos servidores que atuam no controle interno, cujas atribuições dizem respeito à avaliação da atuação administrativa. No entanto, se o servidor se exceder no uso de tal prerrogativa, utilizando-a de forma desproporcional, desarrazoada e de maneira deliberadamente depreciativa, incorrerá no ilícito previsto no inciso I do art. 217.
b) Retirada de documento ou bem público sem autorização (art. 217, inciso II, c/c art. 246, inciso III)
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
Em regra, o serviço público é realizado nos limites geográficos dos órgãos e entidades, ressalvando, é claro, as atividades de campo. Nestes, apesar de serem realizadas em ambiente externo, o servidor submete-se a um determinado setor (como exemplo, os policiais militares que, embora exerçam predominantemente o policiamento ostensivo, se vinculam a determinado batalhão).
Assim, sempre que necessária a retirada de documentos ou objetos do ambiente de trabalho e para fins laborais, deverá haver a autorização da autoridade competente. A proibição visa manter documentos e bens que, por sua natureza pública, devem estar à disposição de interessados e do Poder Público. Além disso, possibilita-se um maior controle dos documentos e bens, sendo possível seu rastreamento, bem como evita-se a utilização desses objetos para fins particulares.
A expressão “documento ou objeto” deve ser interpretada de maneira ampla, abrangendo todo tipo de material, desde livros, autos de processos administrativos, equipamentos, mobiliário, veículos, etc. Caso o servidor retire da repartição o objeto sem a intenção de restituí-lo, e com a intenção de utilizá-lo em ofensa ao interesse público, pode recair em ilícito mais grave, como dilapidação do patrimônio público, passível de demissão (art. 250, inciso V), ou, ainda, extravio de documento público, conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública nos termos do art. 314 do Código Penal, o que desafia a penalidade de demissão a bem do serviço público, conforme inteligência do art. 250, inciso II, da Lei Estadual n° 869/1952.
Com o advento do teletrabalho, contudo, abriu-se uma nova possibilidade de prestação do serviço de forma remota. Acompanhando a mudança quanto à modalidade de trabalho, houve a desmaterialização dos documentos, de modo que muitos deles passaram a existir apenas no meio virtual, diminuindo o escopo de abrangência do presente dispositivo.
Apesar disso, ainda que a prestação de serviço seja remota, tem-se, ainda, como imprescindível a prévia autorização da chefia no que diz respeito à retirada de documentos ou objetos físicos do ambiente de trabalho.
c) Manifestação de apreço ou desapreço e adesão a lista de donativos na repartição (art. 217, inciso III, c/c art. 246, inciso III)
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
A presente infração disciplinar se divide em duas: “promover manifestações de apreço ou desapreço” e “fazer circular ou subscrever lista de donativos no recinto da repartição”. Em ambos os casos, são exigidos a habitualidade e o prejuízo ao serviço público. Isso porque, em relação à primeira parte do dispositivo, não deseja a Administração Pública retirar a humanidade do servidor público, que possui, naturalmente, suas predileções e antipatias, não cabendo ao Estado controlar determinados sentimentos. No entanto, é exigível o respeito mútuo, com um ambiente agradável e propício para o desenvolvimento das atribuições funcionais dos servidores. Por isso, enaltecer ou depreciar de maneira contínua, habitual, a ponto de prejudicar a adequada prestação do serviço público, configura o ilícito em análise, em sua primeira parte.
O ilícito diferencia-se da falta de urbanidade pelo seu caráter reiterado e pelo prejuízo que causa ao serviço público, de maior censurabilidade. O mesmo entendimento se dá quanto ao segundo ilícito do inciso III do art. 217. Para que se configure a infração, a lista de donativos deve ser constante, inoportuna, causando prejuízos ao bom andamento do serviço público. Não configura ilícito disciplinar fazer circular, eventualmente, listas para, por exemplo, confirmar presença em confraternizações.
Neste ponto, merece destaque a discussão existente entre a liberdade de expressão e as manifestações de apreço e desapreço, em especial no contexto das mídias sociais.
A liberdade de expressão é tema muito caro, em especial no Brasil, que, em um passado recente, em contexto de ditadura, se viu em uma realidade em que referida liberdade era tolhida. Todo aquele que ousasse criticar os que se encontravam no poder era severamente punido.
Nesse sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, possui diversos dispositivos que reforçam a livre manifestação do pensamento[1]. A liberdade de expressão não é, contudo, inovação da CRFB/1988, sendo prevista, dada sua singular relevância, até mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos[2].
Apesar de sua distinção, não há se falar em direitos ilimitados, devendo, diante de conflitos entre este e demais direitos, proceder a um sopesamento para que se possa aferir, no caso concreto, qual será o prevalente.
No âmbito da responsabilidade civil, temos que seus elementos constitutivos são a conduta, a culpa lato sensu, o nexo de causalidade e o dano. Nesse sentido, como regra, a responsabilidade civil surge a partir da verificação da ocorrência de um ato ilícito que cause dano, ou mesmo por aquele que, ainda que lícito, seja injusto, como aquele praticado em legítima defesa, estado de necessidade ou exercício regular do direito.
Afora as hipóteses acima mencionadas, sobressai ponto relevante que diz respeito ao marco filosófico do neoconstitucionalismo, o pós-positivismo.
O pós-positivismo se refere a um fenômeno que busca superar a dicotomia existente entre o Positivismo clássico, defendido por Kelsen, e o Jusnaturalismo, indo além da legalidade estrita e confrontando o positivismo, pois a legitimidade do direito não advém apenas da lei.
Para a correta compreensão e aplicação do direito se faz necessário ir além da legalidade estrita, analisando componentes para que se produza o mínimo de justiça. Robert Alexy, por exemplo, faz uso da fórmula de Radbruch para dizer que “a extrema injustiça não é direito”, uma vez que, se ficar caracterizada a extrema injustiça, esse direito é inválido.
O pós-positivismo supera a barreira da legalidade estrita, apesar disso, não desconsidera o direito posto, buscando solucionar o infortúnio do direito positivo dentro de si mesmo. Para tanto, defende uma reaproximação entre o direito e a moral, o direito e a ética e o direito e a justiça, no que se cunhou “virada Kantiana”.
A partir dessas premissas, o direito civil deixou de ser o centro do ordenamento jurídico, passando a Constituição e todos os seus preceitos a tomar tal posição. Nessa toada, tornou-se necessário, além da fria observância dos dispositivos legais, o cumprimento de institutos como o da função social do direito, que se espraia por todas suas áreas.
Nesse sentido, o Código Civil muda a configuração do abuso de direito, enquanto ato ilícito, para torná-lo mais próximo do paradigma da função social do direito, conforme se depreende do art. 187, do CC, o qual prevê que também comete ato ilícito o titular de um direito que excede manifestamente os limites impostos.
O abuso de direito, como ato que gera o dever de indenizar, aproxima-se do ato ilícito, pois quem exerce licitamente um direito não gera o dever de indenizar, mas o exercício irregular de um direito passa a ser causa de gerar obrigação de indenizar, desde que dele decorra um dano. Ou seja, trata-se de verdadeiro ato ilícito. Sendo assim, é extrapolar a utilização do exercício de um direito subjetivo.
Transpondo o referido entendimento para a seara disciplinar, temos que existe, de fato, o direito assegurado à liberdade de expressão, que, inclusive, é reconhecido em âmbito internacional. A despeito disso, não é possível depreender que o exercício do referido direito seja ilimitado, eis que o direito não tolera abusos. Nesse sentido, ainda que sob a premissa de se exercer um direito constitucionalmente assegurado, há que se verificar se houve ou não extrapolação de tal direito.
O Código Civil, em seu artigo 20, permite depreender que a tutela da imagem é realizada em duas searas distintas: aquela denominada imagem-retrato, que nada mais é do que a fisionomia e aparência, e a imagem-atributo, que é a qualificação social do indivíduo, sendo a imagem pela qual as pessoas o reconhecem e julgam. O que interessa ao presente caso é a imagem-atributo.
Da leitura do dispositivo referenciado, denota-se que, nos casos de interesse da ordem pública e da administração da justiça, o direito da imagem da pessoa pode ser utilizado independentemente de sua autorização. Nos demais casos, a autorização de seu titular é imprescindível.
Ao contrário do que se apregoa acerca da teoria da proteção débil do homem público, a mitigação ao uso de sua imagem não pode ser ilimitada e irrestrita, pois, como acima mencionado, o direito não comporta abusos. O que em verdade existe é uma flexibilização do âmbito de tutela de tal direito, senão veja:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - COMENTÁRIOS REALIZADOS POR MEIO DE REDE SOCIAL - LIBERDADE DE EXPRESSÃO - MANIFESTAÇÃO QUE NÃO INDIVIDUALIZA CARGO OCUPADO NEM NOME DA AUTORA - AGENTE POLÍTICO - TEORIA DA PROTEÇÃO DÉBIL DO HOMEM PÚBLICO - AUSÊNCIA DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DA APELADA - DANO MORAL NÃO CONFIGURADO - SENTENÇA MANTIDA. APELAÇÃO DESPROVIDA. A proteção constitucional em relação àqueles que exercem atividade política deve ser interpretada de uma forma mais restrita, havendo necessidade de uma maior tolerância ao se interpretar a violação aos direitos de personalidade do agente político, pois estão sujeitos a uma forma especial de fiscalização pelo povo e pela mídia. (TJ-RR - AC: 08137523820158230010 0813752-38.2015.8.23.0010, Relator: Des., Data de Publicação: DJe 26/09/2018)
Do acima exposto, é possível compreender que se exige uma maior tolerância do ocupante de cargo público a uma provável violação dos direitos da personalidade. Não que tais violações possam ser perpetradas de forma desenfreada, sem que haja qualquer sanção a esse respeito, ainda mais quando se trata de críticas formuladas por subordinados à chefia de um órgão público.
No mesmo sentido, o STJ possui entendimento de que, em se tratando de pessoa pública, o uso de sua imagem não pode ser proibido, desde que haja compromisso ético com a informação verossímil e preservação dos direitos da personalidade, dentre os quais se incluem os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade. E, por fim, que se vede a veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi)[3].
Diante de tudo, depreende-se que o direito à liberdade de expressão se desprende de um exercício legal e democrático a partir do momento que o sujeito coloca em risco ou atinge direitos de personalidade de outrem de forma direta e específica.
Apesar das inúmeras facilidades proporcionadas pelas redes sociais, que permitem a expressão livre das opiniões sem análise prévia ou censura, essas plataformas também facilitam a disseminação rápida e ampla de publicações. Isso pode atingir um grande número de pessoas em um curto espaço de tempo, resultando em danos significativos para os ofendidos de maneira cada vez mais veloz.
Destarte, as publicações em redes sociais podem ter reflexos substanciais, seja na vida privada ou mesmo profissional do ofendido, que rapidamente pode ter sua imagem, honra e dignidade ofendidos perante toda sociedade, o que causa um notório conflito entre o ativismo digital, a liberdade de expressão e o abuso do direito, a serem analisados no caso concreto.
d) Valimento do cargo para lograr proveito pessoal (art. 217, inciso IV , c/c art. 246, inciso III)
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
O ilícito visa coibir condutas contrárias ao interesse público, em que o servidor se utiliza de suas prerrogativas funcionais para obter benefícios pessoais. Trata-se de infração de natureza dolosa, devendo-se comprovar que o servidor agiu com a intenção de lograr o proveito pessoal (elemento subjetivo específico). Aqui é possível incluir a chamada “carteirada”, em que o servidor, valendo-se de seu cargo, apresenta sua carteira funcional para adentrar gratuitamente em locais públicos, cujo acesso é pago.
Para que a infração se configure, basta que o servidor tenha se valido de sua condição como servidor público para obter alguma vantagem, não sendo necessário que o proveito tenha sido, de fato, obtido ou que tenha havido dano ao erário. Trata-se de infração disciplinar formal, em que a conduta e o resultado são previstos no dispositivo, sendo necessário, contudo, apenas a verificação do primeiro elemento (conduta) para que a infração esteja configurada. Nessa perspectiva, o STJ entendeu, relativamente ao ilícito semelhante previsto no Estatuto do Servidor da União, que “a existência de dano ao erário é desinfluente para a caracterização do valimento do cargo para obtenção de vantagem pessoal ou de outrem”.
Tal dispositivo é de aplicação subsidiária, pois somente incidirá quando não se configurar ilícito disciplinar mais grave, ainda que em relação a este apenas exista o dolo eventual, tal como conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública (art. 250, inciso II), lesão aos cofres públicos (art. 250, inciso V) ou recebimento de propina (art. 250, inciso VI).
Vale ressaltar que o valimento do cargo para lograr proveito em favor de outrem (e não do próprio servidor que pratica a conduta), diferentemente do que ocorre no âmbito do funcionalismo público da União (Lei Federal n° 8.112/1990), não configura o ilícito em crivo, por ausência de previsão legal. No entanto, poder-se-ia redundar na incidência de eventual conduta passível de capitulação como prevaricação ou corrupção passiva privilegiada, tratados no tópico 2.6.2.2 deste Manual.
e) Coação ou aliciamento de subordinados com objetivos de natureza partidária (art. 217, inciso V, c/c art. 246, inciso III)
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
De acordo com o princípio da impessoalidade, o servidor público deve atuar com isenção, uma vez que o interesse público não está vinculado a partidos ou a ideologias. A atuação administrativa deve se direcionar verdadeiramente ao bem comum e não a interesses político-partidários. Além disso, a proibição limita o poder hierárquico, que se vincula tão-somente ao exercício da função pública. A proibição não visa punir a simples conversa, troca ou emissão de opinião política, mas, sim, o ato de forçar, obrigar (coagir) ou atrair de forma maliciosa (aliciar) o servidor, com objetivos partidários.
Nota-se que o dispositivo exige uma qualificação especial dos sujeitos do ilícito. Somente o superior hierárquico pode praticar essa infração, enquanto apenas o subordinado sofrerá as influências políticas indesejadas. Sem essa relação superior-subordinado, não há que se falar na infração em análise.
f) Participação em gerência ou administração de empresa comercial ou insdustrial e participação em sociedade comercial (art. 217, inciso VI E VII c/c art. 246, inciso III)
Art. 217 - Ao funcionário é proibido:
[...]
VI - participar da gerência ou administração de empresa comercial ou industrial, salvo os casos expressos em lei;
VII - exercer comércio ou participar de sociedade comercial, exceto como acionista, quotista ou comandatário;
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
Pune-se, aqui, o conflito de interesses presente na situação em que o servidor se dedica a cargo de gerência ou de administração de empresas, simultaneamente ao exercício de sua função pública. A intenção da norma é que o servidor possa se empenhar em suas atribuições públicas, sem exercer uma atividade externa que possa prejudicá-las, não apenas em termos de tempo, como também quanto à atenção e à dedicação que seu cargo ou função exige, haja vista que intercorrências na atividade empresarial poderiam exigir sua dedicação em horário de trabalho, ainda que por via remota (telefone celular, aplicativos de mensagens, etc.). Além disso, visa proteger eventuais conflitos de interesses entre a atuação do servidor público (necessariamente inclinada ao interesse público) e a atuação empresarial (cujo interesse precípuo é o lucro).
Aliás, ótica semelhante é refletida na vedação constitucional do acúmulo de cargos, permitido apenas nos casos especificados no art. 37, inciso XVI, a serem vistos adiante. Para a comprovação do ilícito, são importantes a análise e a juntada do estatuto ou contrato social da pessoa jurídica. No entanto, é necessário, sobretudo, comprovar que o servidor atuava de fato como gerente ou administrador da empresa, dedicando seu tempo e atenção a essa atividade. Nesse contexto, a realidade é objeto primordial de análise, sendo capaz de gerar a imputação no presente dispositivo. Em outras palavras, mesmo que o servidor não figure formalmente no contrato social da empresa, pode-se constatar que ele exercia essa função na realidade, configurando o ato infracional.
Além disso, o servidor público não poderá figurar como empresário individual, uma vez que a figura do titular se confunde com a do administrador, sendo abrangido pela norma. O mesmo entendimento se aplica ao microempreendedor individual.
g) Prática de usura (art. 217, inciso VIII, c/c art. 246, inciso III)
Art. 217 - Ao funcionário é proibido:
[...]
VIII - praticar a usura em qualquer de suas formas;
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
A usura nada mais é do que um contrato de empréstimo com previsão de juros. Note que o dispositivo é categórico ao dizer a “usura em qualquer de suas formas”, não se limitando à incidência de juros abusivos (como prevê a Lei n° 1.521/1951, que dispõe sobre os crimes contra a economia popular). Assim, o contrato de empréstimo de dinheiro, com previsão de juros, mesmo que não abusivos, é vedado ao servidor público. Além disso, a prática de usura, de acordo com o art. 257, inciso IV, justifica a aplicação da pena de cassação de aposentadoria.
O fundamento para a proibição é o seguinte. Não quer o Estado que seu corpo funcional se beneficie ou se remunere de dinheiros outros senão oriundos dos cofres públicos, decorrentes do exercício de suas atribuições. Afinal, pareceria absurda a situação em que o servidor público, que recebe sua remuneração, subsídio ou provento proveniente de recursos públicos, cobrasse juros para emprestar valores àqueles que, indiretamente, o remuneram.
h) Representação de interesses de terceiros junto às repartições públicas (art. 217, inciso IX, c/c art. 246, inciso III)
Art. 217 - Ao funcionário é proibido:
[...]
IX - pleitear, como procurador ou intermediário, junto às repartições públicas, salvo quando se tratar de percepção de vencimentos e vantagens, de parente até segundo grau;
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
Trata-se de uma modalidade especial e mais gravosa do ilícito disciplinar de deslealdade. Vale ressaltar que a expressão “representação”, aqui disposta, não se confunde com o ato de representação típica de atividade de controle (tratado, muitas vezes, na doutrina como modelo recursal). A representação como ato de controle constitui o “recurso administrativo pelo qual o recorrente, denunciando irregularidades, ilegalidades e condutas abusivas oriundas de agentes da Administração, postula a apuração e a regularização dessas situações56”.
A representação aqui tratada corresponde à representação de vontade ou interesse de terceiro, substituindo-o no pleito junto à Administração Pública, com ou sem instrumento de mandato. Tem-se como exemplo o servidor de determinado setor que atua incisivamente no processo administrativo tributário de um amigo, sem, contudo, valer-se de sua influência. Isso porque torna-se teratológico que o servidor público exerça o patrocínio em desfavor de sua fonte pagadora. In casu, tomamos como exemplo o art. 30, inciso I, do Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/1994), que dispõe:
Art. 30. São impedidos de exercer a advocacia:
I - os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora;
Dois pontos devem ser destacados. Se o servidor utiliza sua influência para atuar junto à Administração Pública, não haverá a infração em análise, mas sim ilícito mais grave, qual seja, conduta passível de capitulação como advocacia administrativa, tratada no tópico 2.6.2.1 deste Manual. O segundo ponto a ser ressaltado é o fato de que o mero aconselhamento pontual ou a adoção de posturas que qualquer cidadão comum poderia realizar não configura o ilícito em crivo. Por exemplo, não configuraria o presente ilícito a mera retirada de uma certidão por parte de um servidor para sua mãe, em determinado setor e sem se valer de sua influência.
i) Recebimento de vantagens em razão do cargo (art. 217, inciso X, c/c art. 246, inciso III)
Art. 217 - Ao funcionário é proibido:
[...]
X - receber propinas, comissões, presentes e vantagens de qualquer espécie em razão das atribuições;
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
Tal ilícito impõe sanção ao servidor que recebe qualquer vantagem pelo exercício de sua atribuição. Note a categórica dicção em indicar “em razão das atribuições”, e não “para a prática de ato”. Se a vantagem for “para a prática de ato”, poderá se amoldar na infração disciplinar prevista no art. 250, inciso II, que prevê a penalidade de demissão a bem do serviço para a prática de condutas passíveis de capitulação como crime contra a Administração Pública (corrupção passiva ou concussão).
O presente ilícito pune o recebimento de vantagens pelo exercício regular – e não irregular – de seu cargo. Isso porque o servidor público já é devidamente remunerado para executar suas atribuições, não sendo aceitável a complementação do particular que procura seus serviços, pois este particular já remunera os serviços públicos quando de sua contribuição tributária. O fato de prestar um serviço público de qualidade não justifica “presentes”, “agrados” ou quaisquer outras vantagens, porque este já é um dever essencial do servidor.
j) Contar a pessoa estranha à repartição o desempenho de encargo (art. 217, inciso XI, c/c art. 246, inciso III)
Art. 217 - Ao funcionário é proibido:
[...]
XI - contar a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos em lei, o desempenho de encargo que lhe competir ou a seus subordinados.
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
III - Desrespeito às proibições consignadas neste Estatuto;
Assim como no Direito do Trabalho, o vínculo do servidor com o Estado é intuitu personae, isto é, em razão da pessoa, uma vez que é celebrado com uma pessoa determinada e específica. Por isso, o servidor deve realizar pessoalmente as atribuições que lhe compete, não podendo delegar a terceiros suas funções. Pune-se, portanto, o servidor que encarrega pessoa estranha de atribuição que lhe é própria e para o qual foi nomeado. Da mesma forma, pune-se o servidor que atribui a terceiros o desempenho de encargo que compete a subordinado.
Não se pode perder de vista que, não raras vezes, a atividade pública incide sobre informações sigilosas, seja de caráter pessoal de um cidadão ou servidor, seja referente à própria política de Estado, cuja divulgação pode trazer significativos prejuízos ao interesse público. A interferência de terceiros no serviço público pode acarretar o acesso indevido a essas informações. A reincidência no presente ilícito, conforme dicção da Lei nº 869/1952, art. 271, acarreta a penalidade de demissão:
Art. 271 - Será suspenso por noventa dias, e, na reincidência demitido o funcionário que fora dos casos expressamente previstos em lei, regulamentos ou regimentos, cometer à pessoas estranhas às repartições, o desempenho de encargos que lhe competirem ou aos seus subordinados.
k) Falta grave (art. 217, inciso I)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de:
I - Falta grave.
A falta grave consiste num tipo aberto, que exige complementação valorativa por aquele que o interpreta, sobretudo, pela autoridade julgadora. Trata-se, pois, de conceito casuístico, complementado em cada caso por aqueles que o analisam. Por essa razão, para garantir segurança jurídica, previsão e clareza, o conceito de “falta grave” deve ser adotado com critérios mínimos, sob pena de convalescer-se em verdadeiro instrumento de arbitrariedades do Administrador, além de retirar a lógica do próprio sistema disciplinar mineiro.
Se “falta grave” se reduzir ao arbítrio do analista e julgador, caberia a aplicação de suspensão para descumprimento de deveres, ainda que não houvesse dolo ou má-fé, bastando a mera interpretação para tanto. E, como visto, quando o descumprimento de dever é meramente culposo, cabe apenas a pena de repreensão.
Ou, ainda pior, a falta grave, aplicada sem qualquer parâmetro, poderia tipificar condutas não previstas em lei, sujeitando-se ao arbítrio daquele que a interpreta, podendo se tornar mecanismo de abuso de poder, o que contraria os pilares do Estado Democrático de Direito. Em suma, a falta de critérios para a aplicação da “falta grave” poderia resultar em atuação arbitrária contra legem (atuação contra a lei, correspondente à aplicação de suspensão para descumprimento de dever sem dolo ou má-fé) ou, ainda, com abuso de poder.
Por outro lado, não se quer, com isso, negar a existência da discricionariedade, essencial e tida como verdadeiro poder da Administração Pública. No entanto, toda discricionariedade é regrada, se vinculando aos limites impostos pela lei, bem como pela razoabilidade.
No caso da “falta grave”, em tese, nenhum limite foi exposto expressamente pelo legislador, deixando, aparentemente, ao livre alvedrio da autoridade competente. Tanto é que essa terminologia só é utilizada em legislações anteriores à atual ordem constitucional. O atual Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, por exemplo, não mais prevê a falta grave como ilícito disciplinar, conforme se depreende da já revogada Lei n° 1.711, que, igual ao nosso Estatuto, datava de 1952:
Art. 205. A pena de suspensão, que não excederá de 90 dias, será aplicada em caso de falta grave ou de reincidência.
Art. 212. Será cassada a aposentadoria ou disponibilidade se ficar provado que o inativo:
I – praticou falta grave no exercício do cargo ou função;
O princípio da legalidade é verdadeiro baluarte da Administração Pública, que deve obediência ao que a lei determina ou autoriza, podendo esta, em casos específicos, conferir margem de discricionariedade ao Administrador. Em que pese se admitir a existência de tipos abertos no direito administrativo sancionador, não é razoável interpretá-los como uma abertura ilimitada que permita ao administrador se tornar, indevidamente, verdadeiro legislador casuístico de infrações disciplinares.
Em verdade, quando se admitem tipos abertos, estes manifestam a possibilidade de se relacionar a infração disciplinar ao descumprimento de um dever ou a uma proibição. Carvalho Filho observa:
No Direito Penal, o legislador utilizou o sistema da rígida tipicidade, delineando cada conduta ilícita e a sanção respectiva. O mesmo não sucede no campo disciplinar. Aqui a lei limita-se, como regra, a enumerar os deveres e as obrigações funcionais e, ainda, as sanções, sem, contudo, uni-los de forma discriminada, o que afasta o sistema da rígida tipicidade.57
Assim, devemos compatibilizar a falta grave com a finalidade da lei, considerando, também, sua localização no Estatuto, ou seja, no rol que justifica a penalidade de suspensão. Por essa razão, deve ser considerada, para a caracterização da “falta grave”, a presença do elemento anímico que justifica a penalidade de suspensão, isto é, dolo ou má-fé. É necessário, portanto, interpretar o inciso I do art. 246 em conjunto com o parágrafo único do art. 245 da Lei Estadual n° 869/1952:
Art. 245 - A pena de repreensão será aplicada por escrito em caso de desobediência ou falta de cumprimento de deveres.
Parágrafo único - Havendo dolo ou má-fé, a falta de cumprimento de deveres, será punida com a pena de suspensão.
Nessa perspectiva, consistiria em falta grave o descumprimento doloso ou com má-fé de princípios, que gera impactos significativos para a Administração Pública ou, ainda, alguma outra irregularidade dolosa ou com má-fé não prevista taxativamente na Lei Estadual n° 869/1952, mas que pode ser extraída do ordenamento jurídico. É o caso, por exemplo, das situações que configuram conflito de interesses, dispostas no Decreto nº 48.417/2022. Ou, ainda, de hipóteses de impedimento para atuar nos processos administrativos, conforme disposição dos arts. 61 e 62, da Lei Estadual n° 14.184/2002:
Art. 61 – É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou a autoridade que:
I – tenha interesse direto ou indireto na matéria;
II – tenha participado ou venha a participar no procedimento como perito, testemunha ou representante, ou cujo cônjuge, companheiro, parente ou afim até o terceiro grau esteja em uma dessas situações;
III – esteja em litígio judicial ou administrativo com o interessado, seu cônjuge ou companheiro;
IV – esteja proibido por lei de fazê-lo.
Art. 62 – A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento comunicará o fato à autoridade competente, abstendo-se de atuar.
Parágrafo único. A falta de comunicação do impedimento constitui falta grave para efeitos disciplinares.
l) Recusa em submeter-se à inspeção médica (art. 246, inciso II)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
II - Recusa do funcionário em submeter-se à inspeção médica quando necessária;
Trata-se de uma modalidade especial de desobediência à ordem hierárquica. O art. 17158 da Lei Estadual n° 869/1952 possibilita a concessão de licença-saúde mediante inspeção médica ex officio. Assim, a chefia imediata pode solicitar formalmente uma avaliação da capacidade laborativa do servidor, esclarecendo os motivos que fundamentam o pedido. Nesse caso, o servidor é obrigadoa comparecer à perícia médica no dia e horário marcados59.
No entanto, deve haver fundamentos idôneos e pautados no interesse público para submeter o servidor público a tal procedimento. Nesse contexto, por exemplo, em razão do princípio do nemo tenetur se detegere (não autoincriminação), não se exige que o servidor compareça à perícia médica quando esta puder incriminá-lo ou demonstrar a ocorrência de um ilícito disciplinar.
Dessa forma, deve-se ter em vista que a intenção da norma é também a proteção do próprio servidor, que se encontra doente e precisa submeter-se à perícia médica para que possa se afastar e ser adequadamente tratado. O disposto neste item não se confunde com a perícia (prova pericial), que pode ser requerida pela comissão disciplinar, pelo acusado ou por sua defesa, no âmbito do processo, que será tratada no tópico 4.2.8.4 (espécies de prova).
m) Reincidência em infração punível com repreensão (art. 246, inciso IV)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
IV - Reincidência em falta já punida com repreensão;
A reincidência disciplinar consiste no cometimento de nova infração após a aplicação definitiva de sanção em processo administrativo anterior. Em outras palavras, o servidor é devidamente punido em processo administrativo disciplinar, irrecorrível na via administrativa e, depois disso, comete nova irregularidade.
O art. 246, inciso IV, trata da reincidência de falta punível com repreensão. Assim, o servidor fora punido com a repreensão e, após decisão definitiva que lhe aplicou a pena de repreensão (quando já julgado o recurso ou quando este não fora interposto), comete nova irregularidade passível de igual punição (repreensão). Salienta-se que, no caso do inciso em comento, a reincidência deve ser específica para fins de aplicação da pena de suspensão à conduta já sancionada com repreensão.
Cita-se, como exemplo, o servidor que incorre em descumprimento culposo de dever, é julgado administrativamente, sendo-lhe aplicada a penalidade de repreensão. O servidor decide não recorrer da decisão. Em seguida, comete idêntica irregularidade. Nesse caso, o descumprimento culposo de dever desafiaria a pena de suspensão, por ser reincidente o servidor.
Vale dizer que, caso o servidor público tenha sido reabilitado, ele será considerado tecnicamente primário, ocasião em que a reincidência não importará a penalidade de suspensão. A reabilitação, prevista no art. 253 do Estatuto, será tratada em tópico específico, mais adiante neste Manual.
n) Recebimento doloso e indevido de vencimento, remuneração e vantagens (art. 246, inciso V)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
V - Recebimento doloso e indevido de vencimento, ou remuneração ou vantagens;
Vale ressaltar a diferença deste ilícito em relação àquele previsto no art. 250, inciso V, que pune com a demissão a bem do serviço público a lesão aos cofres públicos. No recebimento doloso e indevido de vencimento, estabelecido no art. 246, inciso V, o servidor recebe indevidamente, mas sem dar causa a tal recebimento. Lado outro, incidirá o art. 250, inciso V, quando o recebimento doloso demandar uma postura ativa do servidor em provocar o erro da Administração Pública, por meio de embuste ou fraude, com o intuito de receber valores indevidamente.
Como exemplo, receberá indevidamente vencimento, nos termos do art. 246, inciso V, o servidor que, ainda que sem fazer jus a adicional de desempenho, o recebe, com consciência de que tal pagamento é indevido. Também pratica esse ilícito o servidor que, por já ter ocupado cargo policial, continua recebendo o auxílio vestimenta previsto no art. 50, da Lei nº 24.035/202260, sabendo ser indevido.
o) Requisição irregular de transporte (art. 246, inciso VI)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
VI - Requisição irregular de transporte;
Trata-se da mera requisição irregular de transporte, que não causa dano ao erário, pois, nesse caso, a conduta desafiaria tratamento mais gravoso, com a aplicação da penalidade de demissão a bem do serviço público (art. 250, inciso V). A irregularidade configura-se noprocedimento de requisição de transporte e não em eventual consequência por ele gerado, isto é, o recebimento doloso e irregular do transporte. Assim, o presente ilícito é de natureza subsidiária, aplicável quando não ocorre outra conduta mais grave.
p) Concessão de laudo médico gracioso (art. 246, inciso VII)
Art. 246 - A pena de suspensão será aplicada em casos de: [...]
VII- Concessão de laudo médico gracioso.
O dispositivo confunde os conceitos de laudo e atestado médico. Laudo médico, de acordo com a medicina legal, é espécie de relatório no qual o médico perito, após a realização de exames, o confecciona por suas próprias mãos, trazendo uma descrição minuciosa da perícia realizada. Como outra espécie de relatório, tem-se o auto médico, assim denominado quando o médico perito, ao realizar o exame, dita a um escrivão o conteúdo do documento.
Ocorre que, pela dicção do dispositivo e o que é praticado na rotina administrativa, quis o legislador trazer, em verdade, o conceito de atestado médico, que, segundo Genival França, “tem a finalidade de resumir, de forma objetiva e singela, o que resultou do exame feito em um paciente, sua doença ou sua sanidade, e as consequências mais imediatas”. Possui, assim, o objetivo de “sugerir um estado de sanidade ou de doença, anterior ou atual, para fins de licença, dispensa ou justificativa para faltas ao serviço, dentre outros.”61
O atestado médico é classificado quanto ao seu conteúdo e veracidade, podendo ser:
▪ idôneo, quando plenamente verdadeiro;
▪ imprudente, quando fornecido de forma inconsequente, afoita, pautada apenas no que diz o paciente;
▪ gracioso/complacente/de favor, quando exagerado, com a intenção de agradar o paciente; e
▪ falso, quando eivado de falsificação ideológica.
O presente ilícito cuida do atestado médico gracioso, ou seja, aquele concedido sem intuito criminoso, mas que exagera seu conteúdo para agradar o paciente. Ou seja, é aquele que, por exemplo, concede mais dias de afastamento ou considera data retroativa de afastamento, quando não é necessário. Nesse caso, é a conduta do médico que justificaria a aplicação da penalidade de suspensão. Trata-se de ilícito próprio, pois somente pode ser praticado por pessoa com umaqualidade específica, qual seja, ser médico.
Nos termos do art. 254 da Lei Estadual n° 869/1952, o servidor que se valer do laudo médico também será suspenso, e, assim como o médico, caso reincida, será demitido:
Art. 254 - Verificado, em qualquer tempo, ter sido gracioso o laudo da junta médica, o órgão competente promoverá a punição dos responsáveis, incorrendo o funcionário, a que aproveitar a fraude, na pena de suspensão, e, na reincidência, na de demissão, e os médicos em igual pena, se forem funcionários sem prejuízo da ação penal que couber.
Ressalta-se que a conduta reincidente do médico, para fins de aplicação da pena de demissão, não requer que a nova concessão de atestado gracioso ocorra com o mesmo beneficiário.
Caso o atestado seja falso e não gracioso, o ilícito poderá acarretar, como será visto, a penalidade de demissão a bem do serviço público.
q) Concessão indevida de diárias (art. 261)
Art. 261 - Será punido com a pena de suspensão, e, na reincidência, com a de demissão, o funcionário que, indevidamente, conceder diárias, com o objetivo de remunerar outros serviços ou encargos, ficando ainda obrigado à reposição da importância correspondente.
Conforme disposto nos arts. 139 a 142 do Estatuto do Servidor, as diárias consistem em valores devidos ao servidor que se desloca de sua sede, eventualmente e por motivo de serviço, para fazer face às despesas extraordinárias com alimentação e hospedagem. Trata-se, assim, de verba de natureza indenizatória.
A concessão indevida de diárias, prevista no art. 261, é aquela que foi desvirtuada de sua finalidade originária. É o caso, portanto, da autoridade hierárquica que, buscando remunerar um serviço extraordinário de seu subordinado, concede-lhe um dia a mais de diária. Imaginemos um servidor que possuía diversas horas extras em um mês, e, nesse mesmo mês, realizou uma viagem, a serviço, por três dias. Sua chefia, buscando recompensá-lo pelo serviço extraordinário, concede quatro diárias. É nesse tipo de situação que incide o presente ilícito.
Note que a finalidade é essencial para a configuração da irregularidade. Isso porque, em tese, o ilícito não envolve um intento puramente egoístico, sendo a diária utilizada para remunerar um serviço prestado. No entanto, trata-se de conduta indevida, pois desvirtua a natureza da verba indenizatória inerente à diária.
Por fim, nos termos do art. 142, também incorre em ato ilícito o servidor que recebe indevidamente a diária, aplicando-se o disposto no art. 246, incisos I (falta grave) e V (recebimento doloso e indevido), da Lei Estadual n° 869/1952:
Art. 142 - Constitui infração disciplinar grave, punível na forma da lei, conceder ou receber diária indevidamente.
r) Ateste indevido e recusa de horas extraordinárias (art. 264)
Art. 264 - Será punido com a pena de suspensão e, na reincidência, com a de demissão a bem do serviço público, o funcionário que atestar falsamente a prestação de serviço extraordinário.
Parágrafo único - O funcionário que se recusar, sem justo motivo, à prestação de serviço extraordinário será punido com a pena de suspensão.
Cuida-se, em primeiro plano, da lealdade, da veracidade e da fé pública do controle de frequência. Isso porque o registro de horas extraordinárias gera direitos ao servidor, tais como pagamento pecuniário, compensação de horas ou folgas compensativas.
O registro eletrônico de frequência é realidade no âmbito estadual. No entanto, não podemos descartar a existência do registro manual de frequência, que fragiliza o controle e facilita o cometimento do ilícito, por meio, por exemplo, do registro de ponto por terceiro.
No ílicito em comento, é essencial fazer uma distinção clara entre as horas trabalhadas em decorrência de convocação para prestação de serviços em caráter extraordinário e excepcional nos termos do Decreto nº 48.348/2022, e as horas extras realizadas como prorrogação da jornada normal de trabalho, para atender à demanda ordinária.
O serviço extraordinário de trabalho é regulamentado pelo Decreto Estadual nº 48.348/2022, que dispõe sobre normas gerais para o cumprimento da jornada de trabalho e a apuração de frequência dos servidores públicos civis da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, que assim prescreve:
Art. 3º – Para fins do disposto neste decreto, considera-se:
I – jornada de trabalho: período no qual o servidor deve permanecer à disposição do órgão ou da entidade em que estiver em exercício;
II – regime de trabalho: forma de cumprimento da jornada de trabalho definida conforme a natureza e a necessidade das atribuições desempenhadas pelo servidor e o horário de funcionamento do respectivo órgão ou entidade;
(...)
Art. 9º – O regime de cumprimento da jornada de trabalho de controle diário caracteriza-se por:
V – jornada de trabalho de até oito horas diárias;
VI – possibilidade de compensação das horas dentro do mês, desde que autorizada pela chefia imediata;
(...)
Art. 12 – É facultada, ao dirigente máximo de órgão ou entidade, a convocação de servidor para prestação de serviço extraordinário de trabalho, no âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, para atender a situações excepcionais e atípicas de trabalho, na forma do art. 9º da Lei nº 10.363, de 27 de dezembro de 1990.
§ 1º – Entende-se por serviço extraordinário de trabalho aquele realizado em período que exceda a jornada diária regular do cargo ou da função e os realizados em fins de semana e feriados.
§ 2º – A prestação de serviço extraordinário de trabalho deve ser suprida pela convocação efetiva de prestação de serviço.
(...)
Diante do exposto, entende-se que o ateste será considerado falso quando não houver convocação e o devido cumprimento do seviço extraordinário, ou seja, quando o ateste for realizado fora dos parâmetros estabelecidos no referido Decreto nº 48.348/2022. Da mesma forma, o servidor convocado para realizar serviço extraordinário, e que se recusar de forma injustificada a cumprí-lo, poderá ser responsabilizado e penalizado com a suspensão, em conformidade com as normas e regulamentações vigentes.
Neste contexto, entende-se que restará configurado o presente ílicito nos casos em que ocorrer o ateste indevido das horas extraordinárias ou a recusa do cumprimento dessas, compreendendo-se como horas extraordinárias aquelas regulamentadas pelo Decreto Estadual nº 48.348/2020.
Em se tratando de horas extras não programadas e não previamente autorizadas, essas devem ser consideradas exclusivamente para compensação dentro do mesmo período mensal, conforme a necessidade do órgão. Ressalta-se que, nesse caso, sendo detectadas irregularidades na realização de horas extras pelo servidor público, e seu ateste indevido, esse fato também será passível de responsabilização.
61 FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal, 9ª edição. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2013. Pág. 25