2.6.2.2. ILÍCITOS PASSÍVEIS DE DEMISSÃO A BEM DO SERVIÇO PÚBLICO (ART. 250)

O art. 250 do Estatuto do Servidor elenca as infrações disciplinares mais graves, que ensejam a penalidade de demissão a bem do serviço público. Passa-se, a seguir, a explicar brevemente cada uma das hipóteses.

 

a) Incontinência pública e escandalosa (art. 250, inciso I)

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que:
I - for convencido de incontinência pública e escandalosa, de vício de jogos proibidos e de embriaguez habitual;

O ilícito disciplinar de incontinência pública e escandalosa consiste na prática de condutas ofensivas à moralidade, de caráter socialmente censurável e com reprovável repercussão pública. Nota-se, pois, o critério binômico a ser aferido na prática do ilícito em questão, quais sejam:

prática de conduta relevantemente contrária à moralidade e ao socialmente aceitável, e;
publicização negativa dos fatos.

O primeiro requisito consiste na prática de ato censurável pela sociedade, de reprovação pela coletividade segundo os padrões de moralidade. Citam-se, como exemplos, o professor que assedia alunos, que troca mensagens pornográficas com os discentes, que se vale do cargo para aferir proveitos sexuais. Também pratica essa irregularidade o chefe que assedia sexualmente seu subordinado, o agente penitenciário que comete crimes patrimoniais como o furto ou roubo, dentre outros.

A Ouvidoria-Geral do Estado – OGE, por meio da Cartilha de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual, traz relevantes orientações quanto à configuração da prática de asédio sexual no âmbito do trabalho, e conceitua o mesmo como: “a conduta de agente público de conotação sexual praticada contra a vontade de alguém, sob forma verbal, não verbal ou física, manifestada por palavras, gestos, contatos físicos ou outros meios, com o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.

A Controladoria-Geral da União - CGU - editou o “Guia Lilás - Orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual, e à discriminação no âmbito Governo Federal”, no qual definiu:

O assédio sexual é crime e não deve ser tolerado. É definido por lei como o ato de constranger alguém, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. (Código Penal, art. 216-A).
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define assédio sexual como insinuações, contatos físicos forçados que devem caracterizar-se como condição para dar ou manter o emprego, influir nas promoções ou na carreira do assediado, prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar ou intimidar a vítima.
O assédio sexual pode se manifestar por meio de mensagens escritas, gestos, cantadas, piadas, insinuações, chantagens ou ameaças; ou seja, de maneira sutil ou explícita, não sendo o contato físico requisito para a configuração do assédio sexual, bastando que ocorra a perseguição indesejada.
(...)
O assédio sexual é um comportamento ou atitude de teor íntimo e sexual, considerado desagradável, ofensivo e impertinente pela vítima. O assédio sexual se caracteriza pelo não consentimento da pessoa assediada.

Assim como a Cartilha de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual, o Guia Lilás traz conceitos e exemplos de atos, gestos, atitudes e falas que podem ser entendidos como de assédio sexual, no âmbito do trabalho, e as consequências em relação à sua prática.

Antônio Carlos Alencar Carvalho, citando José Amando da Costa, leciona que: “a incontinência pública requer conduta indecente e espetaculosa por parte do servidor público, o ridículo, a prática de atos indecorosos, desde que a ação faltosa se revista de reconhecida gravidade, enquanto que a conduta escandalosa na repartição, dispensando o requisito publicidade, se satisfaz com a imoralidade e negativos efeitos sobre a boa marcha do serviço, como no caso do assédio sexual do superior hierárquico sobre subordinadas ou de prática de atos libidinosos no interior da repartição”. (Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância – 4ª edição. Pg. 1085)

O segundo requisito para caracterização do ílicito é a publicização do ato. Isso não significa a necessidade de o ato ser praticado na frente de várias pessoas, mas sim a ciência dos fatos por várias pessoas, como a divulgação em rádio, televisão, jornal, ou, ainda, a divulgação oral pelas pessoas de dada comunidade (especialmente em municipalidades de população reduzida).

A Controladoria Geral da União- CGU orienta que:

Outro comportamento condenado pelo dispositivo em tela é a conduta escandalosa, assim entendida como o desprezo às convenções ou a moral vigente. Conforme visto, os conceitos de “incontinência” e “conduta escandalosa” são semelhantes e estão relacionados a desvios comportamentais. Sob o ponto de vista do estatuto funcional, a principal diferença entre eles reside no fato de que a conduta escandalosa não precisa ser cometida publicamente para que caracterize a infração disciplinar, é dizer, os atos praticados às escondidas, desde que ofendam fortemente a moral, devem ser enquadrados como “condutas escandalosas”, a exemplo dos atos de conotação sexual praticados de forma reservada. Da mesma forma do aduzido quanto à incontinência pública, a conduta escandalosa, para que produza efeitos disciplinares, deve ser praticada no âmbito da repartição. As condutas praticadas fora daquele ambiente só serão alcançadas pela norma se estiverem relacionadas ao exercício das atribuições do servidor. Ressalte-se que a infração disciplinar em questão se consuma quando o servidor pratica o ato classificável como incontinência pública ou conduta escandalosa, sendo que, a rigor, não se exige a reiteração de atos para a configuração da falta funcional. Por fim, forçoso observar a cautela com que a comissão deverá analisar as condutas previstas neste dispositivo, porquanto ensejam a penalidade máxima aplicável e, nesse contexto, devem ter a gravidade robustamente comprovada. (Manual de Processo Administrativo Disciplinar- edição 2022 – pg. 250)

O STJ, ao análisar o REsp nº 2.006.738-PE, tratando da incontinência pública e escandalosa, trouxe importante escólio jurisprudencial sobre o tema:

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. REGULARIDADE DO PROCESSO DISCIPLINAR. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA. LICITUDE. CONCLUSÃO DO PAD. EXCESSO DE PRAZO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. SÚMULA 592/STJ. APLICABILIDADE. CONDUTA ESCANDALOSA NA REPARTIÇÃO. ART. 132, V, PARTE FINAL, DA LEI 8.112/1990. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. INOCORRÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS RECURSAIS. FIXAÇÃO. POSSIBILIDADE.
(...)
9. A "incontinência pública" não se confunde com "conduta escandalosa, na repartição". A primeira hipótese se refere ao comportamento de natureza grave, tido como indecente, que ocorre de forma habitual, ostensiva e em público. Nesse sentido: RMS n. 39.486/RO, relator Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 2/5/2014; AgRg no RMS n. 27.998/AP, relator Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, DJe de 15/10/2012. Já a segunda modalidade pressupõe aquela conduta que, embora também ofenda a moral administrativa, pode ocorrer de forma pública ou às ocultas, reservadamente, mas que em momento posterior chega ao conhecimento da Administração.

Diante da decisão supra, em que pese possuir como parâmetro a Lei nº 8.112/1990, é possível traçar um norte jurisprudencial para pautar a aplicação deste instituto no âmbito do Estado de Minas Gerais.

Quanto à prática de jogos proibidos, a legislação mineira não traz o conceito do que seriam tais jogos, todavia o Decreto-Lei nº 3.688/41 - Lei das Contravenções Penais - trata dos jogos de azar, vejamos: 

Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
(...)
§ 2º Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador.
(...)
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
(...)
Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:

Cumpre ressaltar que, para o servidor público ser demitido pela prática de jogos proibidos, referida decisão deverá se pautar na prática reiterada na vida do agente público, a exemplo daquele agente que participa de jogos, competições e afins, ainda que de forma virtual, em horário de trabalho, ou aquele que comprovadamente, pela prática de jogos proibidos, causa prejuízo à Administração Pública. Dito isso, há de se ressaltar que a prática esporádica, fora do horário e do ambiente de trabalho não é o suficiente para acarretar a pena de demissão.

Quanto ao tema, o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região decidiu que:

RECURSO ORDINÁRIO. FALTA GRAVE. PRÁTICA CONSTANTE DE JOGOS DE AZAR. INFRAÇÃO TIPIFICADA NA ALÍNEA L DO ART. 482 DA CLT. FATO IMPEDITIVO DO DIREITO DO AUTOR. ÔNUS DA PROVA. DESIMCUMBÊNCIA. JUSTA CAUSA CONFIGURADA. l – O ato faltoso grave é aquele que, uma vez caracterizado, mais danosos efeitos provoca em face da vida social, familiar e profissional do trabalhador. O princípio da continuidade do vínculo de Emprego, por seu turno, requer prova estreme de dúvida, a cargo do empregador, que assume o ônus da prova ao apontar qualquer das condutas tipificadas no art. 482 da CLT. Trata-se de fato impeditivo do direito, que atrai a aplicação do art. 373, inc. II do CPC c/c art. 818 da CLT. ll – No caso, o conjunto probatório evidencia que o trabalhador, de forma habitual, dedicava-se a prática de jogos de azar, realizando apostas e conferindo resultados durante o expediente de trabalho, afetando diretamente a sua produtividade laborativa, procedimento que se enquadra na infração tipificada na alínea l do art. 482 da CLT. lll – Apelo do autor a que se nega provimento. (Processo: TRT.6 RO – 0000885-05.2016.5.06.0311, Rel. VALERIA GONDIM SAMPAIO, Data de Julgamento 08/03/2018, 1ª turma). (Grifei)

No que tange à embriguez habitual, entendida como aquela em que o servidor se apresenta ao local de trabalho habitualmente com sintomas de embriaguez, ocasinado por consumo de bebidas alcoólicas ou até mesmo por uso de subtâncias entorpecentes, há que se atentar para o fato de que essa embriaguez pode ser entendida como um indicativo de enfermidade, considerando que tanto o alcoolismo quanto a toxicomania estão classificadas como doenças no Código Internacional de Doenças (CID).

Nesse sentido, é importante ressaltar que o servidor público, cuja capacidade de discernimento esteja comprometida em razão de uma condição de saúde, não poderá ser responsabilizado pelos atos que pratique enquanto esteja em tal estado, uma vez que, nestas circunstâncias, ele não age com dolo ou culpa. A jurisprudência e a doutrina reconhecem que, quando o indivíduo se encontra em situação de enfermidade, sua responsabilidade é mitigada, pois a ação é afetada pela incapacidade temporária de julgamento, o que impede a atribuição de culpa plena. O Decreto-Lei nº 3.688/41 - Lei das Contravenções Penais - também trata da embriaguez habitual, vejamos:

Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia:
Parágrafo único - Se habitual a embriaguez, o contraventor é internado em casa de custódia e 
tratamento.

Nesse sentido, segue julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO - PENA DE DEMISSÃO DE SERVIDOR EFETIVO - INASSIDUIDADE HABITUAL AO SERVIÇO - PATOLOGIA CRÔNICA - ALCOOLISMO HABITUAL - REINTEGRAÇÃO AO CARGO E REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA PARA AFASTAMENTO - DECISÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.

- Segundo entendimento pacificado pelo col. STJ, "o servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vitima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado."
- Restando evidenciado nos autos o preenchimento dos dois requisitos estabelecidos no art. 300 do CPC, quais sejam, a probabilidade do direito alegado pelo requerente (fumus boni iuris) e o perigo de dano ou ao risco ao resultado útil do processo que inviabilize a espera pelo julgamento do mérito do feito originário (periculum in mora), deve ser mantida a decisão guerreada que determinou a imediata reintegração do servidor ao cargo que ocupava, bem como determinou a realização de perícia médica para afastá-lo do cargo, se for o caso, em licença médica. - Recurso conhecido e não provido. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.22.046849-0/001, Relator(a): Des.(a) Maurício Soares , 3ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/11/2022, publicação da súmula em 18/11/2022)

A perícia médica, nessas situações, é um procedimento fundamental para a formação de um julgamento preciso sobre as condições de saúde do servidor, especialmente quando surgem dúvidas substanciais sobre sua capacidade de trabalhar. Isso se deve ao fato de que a comprovação de doenças demanda a realização de exames médicos específicos, acompanhados de laudos periciais que atestem, de forma técnica e embasada, o estado clínico do servidor.

Destaca-se que, no caso de um servidor que, ocasionalmente, se apresenta no local de trabalho com sinais de embriaguez, mas sem indícios de doença aparente, ele estaria, em princípio, sujeito à infração em comento. A avaliação do caso concreto deverá ser realizada com base nas circunstâncias específicas de cada situação, levando-se em conta o conjunto probatório obtido no processo.

 

b) Conduta passível de capitulação como crime contra a administração pública (art. 250, inciso II)

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que: [...]
II - praticar crime contra a boa ordem e administração pública e a Fazenda Estadual;

O art. 250, inciso II, deve ser lido em consonância com o princípio instrumental da interpretação conforme a Constituição. Como se sabe, o Estatuto do Servidor Público de Minas
Gerais data de 1952, utilizando-se, ainda, termos já obsoletos, como o dispositivo em análise, que menciona “praticar crime contra a boa ordem e administração pública”. Essa expressão remonta ao Código Penal do Império, de 1830, cujo Título V era “Dos Crimes contra a boa Ordem, e a Administração Pública”.74

Hoje, como sabido, não mais persiste tal nomenclatura, limitando-se o atual Código Penal a trazer, em seu título XI, os “Crimes contra a Administração Pública”. Assim, a Lei Estadual n° 869/1952, por se basear em uma ordem jurídica e constitucional já ultrapassada, apresenta dispositivos que não foram recepcionados (como o art. 213, que prevê a prisão administrativa) ou que dependem de interpretação conforme a Constituição, como é o caso do art. 250, inciso II (crimes contra a Administração Pública como ilícito disciplinar).

Considerando que compete ao Poder Judiciário dizer se determinado fato concreto é, ou não, crime, a interpretação que se deve dar ao dispositivo, para adequá-lo à ordem constitucional vigente, é considerar como ilícito disciplinar condutas que, por seu alto grau de reprovabilidade, também são consideradas como crimes. Isto é, devem se enquadrar nesse dispositivo condutas que são tipificadas, no Código Penal, como crimes contra a Administração Pública.

Isso não quer dizer que, no âmbito de um processo administrativo disciplinar, determinadas condutas serão consideradas crimes ou não, pois, como dito, isso só cabe ao Poder Judiciário. Tratase de “tomar emprestado”, em uma visão sistemática do ordenamento jurídico, a tipificação criminal de condutas tidas como atentatórias à Administração Pública.

Essa interpretação é de extrema importância para garantir a independência das instâncias penal e administrativa. Em verdade, o art. 250, inciso II, utiliza a descrição fática das condutas previstas no Código Penal como uma extensão de seu próprio texto. Desta forma, à guisa de exemplo, deve ser lido o artigo:

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que:
II - praticar “conduta passível de capitulação como crime contra a boa ordem e administração pública e a Fazenda Estadual, notadamente:
a. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, e, assim por diante, os demais crimes contra a Administração Pública.

Nessa perspectiva, enquanto o direito penal pune o crime de concussão, os órgãos de controle interno punem o ilícito disciplinar de exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. Assim, na seara disciplinar, não se pune o crime, mas a conduta que configura o ilícito disciplinar. Assim, garante-se a constitucionalidade do dispositivo, estabilizando-o como ilícito disciplinar de alta gravidade, que, além de também ser passível de consideração como crime contra a Administração Pública, também fundamenta a penalidade de demissão a bem do serviço público.

Vale relembrar que, em razão da independência das instâncias, não precisa haver a deflagração, tampouco a conclusão de uma ação penal para se imputar o ilícito ao servidor público. Enquanto aqui se pune a infração disciplinar de, por exemplo, exigir vantagem em razão de suas funções, a justiça criminal pune o crime de concussão. Cada apuração ocorre em diferentes searas e permite a apuração e punição de um mesmo fato, sem que isso consista em duplo sancionamento (bis in idem).

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, julgando a Apelação Cível 1.0395.08.019283- 8/001, em 11 de fevereiro de 2014, decidiu:

TJ-MG - Apelação Cível : AC 10395080192838001 MG
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ANULATÓRIA - ATO ADMINSTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO - DEMISSÃO A BEM DO SERVIÇO - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - REGULARIDADE - ESFERA ADMINISTRATIVA E CRIMINAL - INDEPENDÊNCIA - CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - COMPROVAÇÃO - ART. 250, II, DA LEI ESTADUAL N° 869/1952 - RAZOABILIDADE - SENTENÇA MANTIDA.
- Cabe ao Poder Judiciário analisar se o ato foi realizado sob o amparo dos princípios da legalidade, da razoabilidade, da impessoalidade, da proporcionalidade e da isonomia.
- A Administração Pública não está condicionada à prévia condenação penal do servidor para aplicar a pena de demissão em razão da prática de crime, estando pacificado, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que as esferas civil, administrativa e criminal são independentes.
- Comprovando-se, em Processo Administrativo Disciplinar, instaurado com observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, a prática de crime contra a Administração Pública, não há que se questionar a razoabilidade do ato que determinou a demissão do servidor a bem do serviço público, nos termos do art. 250, II, da Lei n° 869/1952.75

Ao final, vale a pena destacar o seguinte trecho:

Ocorre que, no caso destes autos, apesar de ter ocorrido a remessa de cópia do procedimento administrativo ao Ministério Público (fls. 316-317 dos autos conexos), sequer há notícia acerca da instauração da ação penal, devendo assim prevalecer a conclusão administrativa. Dessa forma, restando comprovada nos autos a prática de crime contra a Administração Pública, não há que se questionar a razoabilidade do ato que determinou a demissão da recorrente a bem do serviço público, nos termos do art. 250, II, da Lei n° 869/1952.76

O STJ, apreciando a matéria, posicionou-se no mesmo sentido:

STJ - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA: RMS 30590 RS 2009/0190372- 2 – DJE: 7/5/2010.
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL CIVIL. PAD. DEMISSÃO. LEI N° 7.366/80 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, ART. 81, INCISOS XXXVIII E XL. PECULATO. ABSOLVIÇÃO PENAL. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. INCOMUNICABILIDADE ENTRE INSTÂNCIAS. AUTORIDADE PROCESSANTE. ACERVO FÁTICO. VALORAÇÃO. ESFERA ADMINISTRATIVA. CONDENAÇÃO. POSSIBILIDADE. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. OBSERVÂNCIA. PENALIDADE. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. APLICAÇÃO. VALIDADE.
I - A doutrina e jurisprudência pátrias são unânimes em reconhecer o princípio da incomunicabilidade entre as instâncias administrativa e penal, ressalvadas as hipóteses em que, nessa última, reste caracterizada a inexistência do fato ou a negativa de autoria - situação, porém, não vislumbrada na espécie.
II - In casu, a aplicação da penalidade de demissão do recorrente teve por base a valoração das provas produzidas no âmbito do processo administrativo disciplinar, que, observando os princípios da ampla defesa e do contraditório, não apresenta mácula capaz de levá-lo à nulidade.
III - Hipótese em que a cominação da pena pautou-se em critérios de razoabilidade e proporcionalidade, lastreados na gravidade dos atos praticados pelo recorrente, devidamente contemplados na motivação exarada pela autoridade administrativa. Recurso ordinário desprovido.

Por fim, em recente julgado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ratificou seu entendimento, conforme decisão publicada em 10 de fevereiro de 2017:

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRELIMINARES: CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA - NECESSIDADE DE INSTAURAR INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL E SUSPENDER O PAD ATÉ JULGAMENTO DEFINITIVO DE PROCESSO PENAL - REJEIÇÃO. ESCRIVÃ DE SECRETARIA DE JUÍZO - INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS - ADEQUAÇÃO À LEI FEDERAL N° 9.296/96 - PERÍCIA NOS ARQUIVOS DE ÁUDIOS - DESNECESSIDADE - INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS CONFIGURADAS - NATUREZA GRAVÍSSIMA - PENALIDADE – DEMISSÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO NÃO PROVIDO.

Não se anula processo administrativo disciplinar quando garantido ao servidor o devido processo legal, sem provas de qualquer prejuízo à ampla defesa e ao contraditório. Não havendo dúvidas de que o servidor estivesse acometido de algum tipo de distúrbio mental que pudesse interferir em seu desempenho funcional, alterando de forma patológica sua capacidade de discernimento, à época dos fatos apurados, desnecessária a instauração de incidente de sanidade mental. A apuração de ilícito administrativo que também constitui ilícito penal, em processo administrativo disciplinar, prescinde de prévia condenação definitiva em processo criminal, tendo em vista a autonomia das instâncias. A Lei n° 9.296/96, que trata das interceptações telefônicas, não condiciona sua validade à perícia, quando colhidas licitamente, os áudios são disponibilizados aos interessados, possibilitando-lhes o exercício da ampla defesa e do contraditório, e, principalmente, quando reconhecida a sua autenticidade pela própria parte, sendo cabível a sua utilização de forma legítima, como prova emprestada. Restando comprovadas diversas irregularidades praticadas pela servidora, no exercício do cargo de Escrivã, como a prática dos crimes de corrupção passiva e peculato, além de manter contatos próximos com agiotas, detentos, ex-condenados e pessoas ligadas a eles; com a realização contumaz de favores a estas pessoas, fornecendo-lhes informações privilegiadas, inclusive, sigilosas, sobre processos que tramitavam na Vara na qual era titular em troca de vantagem pessoal - dinheiro, ainda que na forma de empréstimos -, mostra-se proporcional e adequada a pena de demissão. 77

Ademais, como já afirmado, o ponto de contato existente entre a instância criminal e a administrativa diz respeito tão somente à reconhecida negativa de autoria e inexistência do fato, sendo os únicos motivos em que, necessariamente, a sentença criminal alcançará a administrativa.

Além daqueles descritos nos arts. 312 e seguintes do Código Penal, também são considerados crimes contra a Administração Pública os previstos na Lei n° 14.133/2021 (licitações), na Lei n° 13.869/2019 (abuso de autoridade), e os crimes contra a administração ambiental, previstos nos arts. 66 a 69-A da Lei n° 9.605/1998. Ressalta-se, ainda, a Súmula 599 do STJ, aplicável ao tema:

Súmula 599 - STJ: O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública.

Vejamos, brevemente, algumas condutas passíveis de capitulação como crime contra a Administração Pública, que desafiam a penalidade de demissão a bem do serviço público.

 

Peculato (art. 312 do Código Penal)

A doutrina penal diferencia cinco espécies de peculato, a saber:

I - Peculato próprio (apropriação e desvio);
II - Peculato impróprio (furto);
III - Peculato culposo;
IV - Peculato estelionato;
V - Peculato eletrônico.

 

I - Peculato próprio (apropriação e desvio)

O peculato próprio está previsto no caput do art. 312 do Código Penal, e prevê dois núcleos, apropriação e desvio:

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.

Em todo o caso, o servidor, em razão do cargo, possui a posse de dinheiro, valor ou bem, de titularidade pública ou particular. No peculato apropriação, o servidor inverte a posse em domínio, passando a tratar o bem, valor ou dinheiro como se seu fosse. Como exemplo, tem-se a enfermeira que se apropria de medicamentos cuja posse tem em razão do cargo. 78

No peculato desvio, o servidor altera a finalidade do objeto material (dinheiro, valor ou bem), em proveito próprio ou de terceira pessoa. Como exemplo, citam-se os servidores que, responsáveis pela guarda de valores recebidos a título de multa ambiental, adquirem salgados e refrigerantes para uma confraternização do órgão. Note ser imprescindível a posse em razão do cargo. Não está abrangida aqui a conduta do servidor que subtrai bens, valores e dinheiro em razão das facilidades proporcionadas pelo cargo (trata-se do peculato furto, a ser tratado adiante).

 

II - Peculato impróprio (peculato furto)

O peculato impróprio é o peculato furto, ou seja, aquele no qual o servidor, embora não tenha a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai valendo-se das facilidades propiciadas pelo cargo, ou, ainda, concorre para que a subtração ocorra.

Art. 312 [...] § 1° Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, alendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

 

III - Peculato culposo

Consiste, nos termos do art. 312, §2°, na conduta de o servidor concorrer, de forma culposa, para a prática de crime de outrem.

Art. 312 [...]
Peculato culposo
§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.

Trata-se da inobservância do dever de cuidado em que o servidor, mediante imprudência, negligência ou imperícia, concorre para a prática de outro peculato, como entende a maior parte da doutrina. É o caso do servidor que, culposamente, deixa objetos expostos, sem o devido cuidado, deixando que outro servidor o subtraia. Por exemplo, o diretor do almoxarifado que não tranca a sala em que guarda os bens da unidade ou o diretor de presídio que não guarda adequadamente as munições, permitindo, em ambos os casos, que os objetos sejam subtraídos por outros servidores.

 

IV - Peculato estelionato

Trata-se do peculato mediante erro de outrem, previsto no art. 313 do Código Penal:

Art. 313. Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem.

Nota-se que aqui, diferentemente do peculato próprio, o servidor não possui a posse do bem em razão do cargo. Ele se apropria do dinheiro ou utilidade que lhe foi entregue, no exercício do cargo, mediante erro de outrem. Além disso, o servidor não contribuiu para o erro, que é exclusivo do terceiro.

 

V - Peculato eletrônico

Previsto no art. 313-A do Código Penal, o peculato eletrônico consiste em:

Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano:

Nota-se que a infração é própria, punindo apenas o servidor autorizado a manipular o sistema informatizado. Pune-se a conduta de inserir ou facilitar a inserção de dados falsos, alterar ou excluir dados corretos dos sistemas informatizados ou banco de dados da Administração Pública, visando a obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem, ou simplesmente para causar dano.

Interessante tratar, aqui, da falsificação de atestados médicos por parte de servidores. Isso porque, quando o servidor falsifica um atestado médico, buscando o deferimento ou a ampliação de licença-saúde, haverá o lançamento por parte do servidor autorizado no Sistema de Administração de Pessoal – SISAP, constando, em referido sistema, o afastamento do servidor.

Assim, aquele que falsifica o atestado médico induz a erro o servidor responsável pela inserção daqueles dados no sistema informatizado, que o fará de posse do documento falsificado. Nesses termos, com base no art. 20, §2°, do Código Penal, responde pelo erro o terceiro que o determina:

Art. 20 [...]
§ 2° - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.

Nesse diapasão, o servidor que falsifica atestado médico ou outro documento que implique,
por erro de um terceiro, a inserção de dados falsos nos sistemas informatizados da Administração
Pública, incorrerá no presente ilícito disciplinar, ensejando, portanto, a penalidade de demissão a
bem do serviço público.

O terceiro que incorreu em erro, por não possuir dolo, não responde por qualquer ilícito. No
entanto, se demonstrada a sua participação, por dolo direto ou eventual, responderá, assim, pelo
ilícito disciplinar em estudo.

 

Concussão (art. 316 do Código Penal)

A etimologia da palavra já apresenta os traços da conduta punível. Concussão deriva da palavra latina concutere, que consiste em balançar uma árvore para fazer com que seus frutos caiam, e, assim, apanhá-los. Em interação com a conduta apurada, é extorquir determinado indivíduo para forçá-lo ao pagamento de alguma vantagem.

Previsto no art. 316 do Código Penal, possui a seguinte dicção legal:

Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.

Aqui, diferentemente da corrupção passiva, o verbo é exigir vantagem indevida em razão da função pública exercida. Para que incorra no presente ilícito disciplinar, o servidor deve ter, em seu rol de atribuição, aquela da qual se vale para realizar a exigência. Caso contrário, não se verifica o presente ilícito.

 

Corrupção passiva (art. 317 do Código Penal)

Diferentemente da concussão, a corrupção passiva, descrita no art. 317 do Código Penal, não é constituída pelo verbo exigir, mas sim solicitar, receber, ou aceitar promessa de vantagem indevida em razão de seu cargo:

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.

Para a configuração do ilícito administrativo previsto no art. 250, inciso II, é indiferente demonstrar se houve concussão (exigência de vantagem indevida) ou corrupção passiva (solicitação, recebimento ou aceite de vantagem indevida). Qualquer uma dessas condutas configura o ilícito previsto no art. 250, inciso II, que, genericamente, engloba todos os crimes contra a Administração Pública. Essa diferenciação é relevante na esfera criminal, pois implicará na alteração do crime cometido e na pena a ser aplicada, segundo prescrito nos artigos 316 e 317 do Código Penal.

 

Corrupção passiva “privilegiada” e prevaricação (art. 317, § 2°, e art. 319 do Código Penal)

O Código Penal prevê a chamada corrupção passiva “privilegiada”:

Art. 317 [...] § 2° - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem.

Aqui, o servidor não aufere qualquer vantagem por deixar de praticar ou retardar ato de ofício ou praticá-lo com violação de dever funcional, mas tão-somente cede a pedido ou influência de um terceiro. São os “favores” administrativos. Difere-se da prevaricação pois, nesta, o ato de ofício é praticado para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Na corrupção passiva privilegiada, o servidor cede a pedido de terceiro, enquanto que na prevaricação a iniciativa parte dele mesmo, no intuito de satisfazer um interesse ou um sentimento pessoal. Referindo-se à prevaricação, Rogério Sanches explica que “trata-se de uma espécie de ‘autocorrupção’, no sentido de que o funcionário se deixa levar por alguma vantagem indevida que pretende obter para si, violando, por isso, seus próprios deveres funcionais”.79

 

Prevaricação imprópria (art. 319-A do Código Penal)

O art. 319-A estabelece o que a doutrina denomina prevaricação “imprópria”, praticada no âmbito de estabelecimento prisional:

Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

As pessoas que se encontram reclusas, sob a custódia do Estado, sofrem, por óbvio, limitações ao exercício de seus direitos fundamentais, de modo a compatibilizá-lo com a disciplina intrínseca ao sistema carcerário e aos fins da pena. Para além da liberdade, o contato com o mundo exterior é realizado com a fiscalização e supervisão do diretor do presídio e de seu corpo funcional, podendo, nos termos da Lei de Execução Penal, suspender o recebimento ou o envio de correspondências escritas e visitas (art. 41 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984)80

A prevaricação imprópria visa garantir que não haja comunicação do preso com o mundo exterior. Nesse sentido, é vedado, nos termos do art. 50, inciso VII, da Lei de Execução Penal, constituindo falta grave, o acesso a “aparelho telefônico, rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.

Cometem tal irregularidade o Diretor do presídio e seus agentes. Os demais sujeitos podem incorrer no art. 349-A, que prevê o favorecimento pessoal impróprio:

Art. 349-A. Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional.

Sendo esse sujeito servidor (excetuando, como dito, os responsáveis pela segurança penitenciária), deverá ser demonstrado que o mesmo se valeu do cargo para ingressar mais facilmente com tais objetos no presídio ou penitenciária. Cita-se, como exemplo, o servidor estadual que goza de prestígio por parte do agente do sistema penitenciário e se vale dessa condição para adentrar no local com um celular. Nessa hipótese, pode-se configurar também incontinência pública e escandalosa, já tratada neste manual.

A prevaricação imprópria explicita o descumprimento de vedar ao preso o acesso aos objetos já mencionados, o que é conferido apenas a determinados servidores, notadamente àqueles que compõem o sistema de segurança pública.

 

Fuga de pessoa presa (art. 351 do Código Penal)
A fuga de pessoa presa é crime descrito no art. 351 do Código Penal, tendo modalidades praticadas exclusivamente por servidor público:

Art. 351 - Promover ou facilitar a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança detentiva:
[...]
§ 3° - A pena é de reclusão, de um a quatro anos, se o crime é praticado por pessoa sob cuja custódia ou guarda está o preso ou o internado.
§ 4° - No caso de culpa do funcionário incumbido da custódia ou guarda, aplica-se a pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Os §§3° e 4° são ilícitos praticados por servidor público incumbido da guarda ou custódia do preso, nas modalidades dolosa e culposa. Tais ilícitos ensejam a aplicação da penalidade de demissão a bem do serviço público, nos termos do art. 250, inciso II.

Na primeira hipótese (§3°), o servidor, dolosamente, promove ou facilita a fuga de pessoa presa ou internada que esteja sob sua custódia ou guarda. Já na segunda (§4°), o servidor, em inobservância do dever objetivo de cuidado, por meio de imprudência, negligencia ou imperícia (conduta culposa), viabiliza a fuga daquele que está sob sua responsabilidade.

Após discorrer brevemente sobre algumas condutas passíveis de capitulação como crime contra a administração pública (art. 250, inciso II), retoma-se a análise das infrações disciplinares previstas no art. 250 e que acarretam a aplicação de demissão a bem do serviço público.

 

c) Revelação dolosa de segredo (art. 250, inciso III)

O inciso III do art. 250 do Estatuto do Servidor assim dispõe:

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que: [...]
III - revelar segredos de que tenha conhecimento em razão do cargo ou função, desde que 
o faça dolosamente e com prejuízo para o Estado ou particulares; 

Tamanha a gravidade do ilícito, a conduta transcrita é considerada crime qualificado na esfera penal, previsto no art. 153, §1º-A, do Código Penal:

Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
(...)
§ 1º-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 2º. Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada.

Tal conduta não se insere no inciso anterior (conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública) em razão de o art. 153 estar inserido no rol de crimes contra a liberdade individual, e não no de crimes contra a Administração Pública. Além do mais, o critério adotado pela lei (e trazido pela doutrina) é topográfico, decorrente de sua localização no Código Penal, e não relativo ao bem jurídico lesado no crime.

A revelação, como visto, é dolosa, o que também o diferencia do descumprimento do dever de discrição, já tratado neste Manual. Além de doloso, deve haver prejuízo à Administração Pública ou a particulares, a ser comprovado na instrução processual, justificando-se, assim, a severidade com a qual o ilícito é tratado.

 

d) Ofensa física (art. 250, inciso IV)

A infração está prevista no inciso IV do art. 250:

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que: [...]
IV - praticar, em serviço, ofensas físicas contra funcionários ou particulares, salvo se em legítima defesa;

O dispositivo traz a expressão “ofensa física”. Por ser um tipo administrativo incompleto e necessitar complementação normativa, recorre-se aos conceitos do Direito Penal, tendo em vista a similitude do tema. Essa analogia, como instrumento de integração do direito, é possível, contudo, apenas quando a omissão do legislador é involuntária e quando a interpretação é mais favorável ao processado (integração in bonam partem).

Nesse contexto, para fins disciplinares, constitui ofensa física a lesão corporal em qualquer modalidade (leve, grave e gravíssima). Despreza-se, contudo, o delito de vias de fato, constante na Lei de Contravenções Penais, ilícito de menor gravidade (art. 21 do Decreto-Lei n° 3.688/1941), por não configurar lesão corporal nos moldes do artigo 129 do Código Penal. Assim, admitir a vias de fato como incidente neste artigo configuraria analogia in malam partem (em prejuízo do acusado), rechaçada pelo direito punitivo.

Segundo Guilherme de Souza Nucci, “a lesão pode ser cometida por mecanismos não violentos, como o caso do agente que ameaça gravemente a vítima, provocando-lhe uma séria perturbação mental”81. No mesmo sentido, Rogério Greco, citando Nelson Hungria, expõe que:

o crime de lesão corporal consiste em qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem. Não se trata, como o nomen juris poderia sugerir prima facie, apenas do mal infligido à inteireza anatômica da pessoa. 82

A distinção da lesão corporal leve para a vias de fato é sensível, exigindo rigor na análise de cada caso. A guisa de exemplo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais considerou um soco no rosto como vias de fato, como se verifica na ementa que se segue:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - CONTRAVENÇÃO PENAL DE VIAS DE FATO NO ÂMBITO DOMÉSTICO E DESOBEDIÊNCIA - PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA VARA CRIMINAL - REJEIÇÃO - MÉRITO - ABSOLVIÇÃO DA CONTRAVENÇÃO PENAL DE VIAS DE FATO - IMPOSSIBILIDADE - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DELITO DE DESOBEDIÊNCIA - ABSOLVIÇÃO - NECESSIDADE - ATIPICIDADE DA CONDUTA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1 - Na espécie, é possível verificar que a vítima sofreu agressões no âmbito doméstico, fato suficiente a ensejar a aplicação da Lei 11.340/06, não havendo que se falar, dessa forma, em remessa dos autos para o juizado especial criminal. 2- Comprovado nos autos que o acusado desferiu um soco no rosto da vítima, de rigor a manutenção de sua condenação pela prática de vias de fato. 3- Em se tratando de infrações cometidas no âmbito doméstico, normalmente praticadas na clandestinidade, longe de testemunhas, a palavra da vítima ganha extrema relevância probante, especialmente quando apoiada em outros indícios, como na espécie. 4 - Como é cediço, as medidas protetivas descritas na Lei 11.340/06 possuem natureza cautelar e visam proteger as vítimas de abuso por parte de seus agressores, sendo que, na hipótese de descumprimento, há a previsão de aplicação de sanções de natureza civil, como multa (art. 461, §5°, do CPC), bem como a possibilidade de requisição de auxílio policial (art. 22, §3°, da Lei 11.340/06) e decretação de prisão preventiva (art. 313, III, do CPP). 5 - Assim, diante da possibilidade de aplicação de outras sanções, inexistindo, ademais, ressalva expressa que admita o reconhecimento cumulativo da prática de crime, forçoso reconhecer a atipicidade da conduta, impondo-se, pois, a absolvição do acusado.83

Dessa forma, para preencher o conteúdo conceitual de “ofensa física”, prestigiando a principiologia hermenêutica que orienta o direito sancionador, considera-se, para a configuração do presente ilícito, justificador da pena máxima disciplinar, as lesões corporais, em quaisquer de suas modalidades, e não as vias de fato.

Como regra, é necessária perícia para atestar a lesão e seu grau, haja vista se tratar de infração que deixa vestígio. No entanto, restando impossível tal exame, é possível, desde que presentes outros elementos probatórios (testemunhas, vídeos do momento da ação, etc), o processamento e a punição do servidor. Vejamos:

PROCESSUAL PENAL RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - TENTATIVA DE HOMICÍDIO - ABSOLVIÇAO SUMÁRIA E DESCLASSIFICAÇAO - INADMISSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE LAUDO DE EXAME DE LESÕES CORPORAIS - POSSIBILIDADE DE SUPRIMENTO POR OUTROS MEIOS DE PROVA - RECURSO DESPROVIDO.
1 - Não havendo nos autos prova cabal, em nada reticente, no sentido de que o ora Recorrente tenha agido amparado pela excludente de criminalidade da legítima defesa, assim como lastro probatório que permita ao julgador afirmar que o réu não agiu com animus necandi, tanto a absolvição sumária quanto a desclassificação se mostram incompossíveis, despontando a pronúncia como única opção, pois nesta fase há mero juízo de admissibilidade da acusação, ou melhor, há mero juízo de suspeita, não de certeza.
2 - Existindo nos autos outros meios de prova plenamente capazes de convencer o julgador da existência do crime, resta suprida a ausência de laudo de exame de lesões corporais.
3 - Recurso ao qual se nega provimento.84

 

e) Lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio do Estado (art. 250, inciso V)

O ilícito está descrito no seguinte dispositivo do Estatuto do Servidor:

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que:
[...]
V - lesar os cofres públicos ou delapidar o patrimônio do Estado;

A lesão aos cofres públicos consiste em toda ação ou omissão do servidor público capaz de gerar prejuízo, significativo ou não, ao erário. Inclui-se aqui, por exemplo, o ato de superfaturar contrato administrativo, celebrar contratos prejudiciais à Administração Pública, a realização de pagamentos indevidos para favorecer terceiro, enfim, toda conduta que causa lesão ao patrimônio do Estado.

A conduta pode ser comissiva ou omissiva. Exemplo de conduta omissiva é a do gestor do contrato, que nada faz para impedir ou reduzir o dano ao erário. Enquanto a lesão aos cofres públicos consubstancia-se em prejuízo patrimonial representado por importância monetária, a dilapidação consiste em mácula a outros bens materiais da Administração Pública. Nas duas modalidades, haverá o prejuízo ao patrimônio, mas como observa José Armando da Costa, há essa diferença entre a lesão e a dilapidação:

Como no gênero todo mal se assemelha, o mesmo ocorre em relação à lesão e à dilapidação, pois ambas caracterizam, grosso modo, ofensa ao patrimônio público, embora sejam distintas na espécie, uma vez que a lesão aos cofres públicos, como infração disciplinar, denota a subtração de bens representados por dimensão em dinheiro; enquanto que a transgressão consistente em dilapidação do patrimônio público, mesmo que exprima desfalque, não se concreta por meio de uma cifra monetária auferida pelo servidor. 85

Em que pese o autor utilizar o verbo “subtrair”, o presente ilícito não é perpetrado dessa forma, abrangendo, indubitavelmente, outros meios de execução. Não raras vezes, o servidor
público, ao incorrer neste ilícito, também incorre em outro, como conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública, mormente as condutas definidas como peculato ou como crimes licitatórios, previstos na Lei n° 8.666/1993 ou, a partir da Lei nº 14.133/2021, no Capítulo II-B do Código Penal.

Como aponta José Armando da Costa86, a dilapidação do patrimônio estadual é a “destruição, o estrago e o desperdício”, consubstanciado, à guisa de exemplo, na destruição dolosa de objetos e materiais do Estado. Vale ressaltar, ainda, que, conforme entendimento do STJ, constante do Informativo n° 523, a penalidade de demissão deve ser aplicada ao servidor que tiver indevido proveito econômico em razão do cargo, independentemente do valor:

DIREITO ADMINISTRATIVO. IRRELEVÂNCIA DO VALOR AUFERIDO PARA A APLICAÇÃO DA PENA DE DEMISSÃO DECORRENTE DA OBTENÇÃO DE PROVEITO ECONÔMICO INDEVIDO.
Deve ser aplicada a penalidade de demissão ao servidor público federal que obtiver proveito econômico indevido em razão do cargo, independentemente do valor auferido. Isso porque não incide, na esfera administrativa - ao contrário do que se tem na esfera penal -, o princípio da insignificância quando constatada falta disciplinar prevista no art. 132 da Lei 8.112/1990. Dessa forma, o proveito econômico recebido pelo servidor é irrelevante para a aplicação da penalidade administrativa de demissão, razão pela qual é despiciendo falar, nessa hipótese, em falta de razoabilidade ou proporcionalidade da pena. Conclui-se, então, que o ato de demissão é vinculado, cabendo unicamente ao administrador aplicar a penalidade prevista. MS 18.090-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 8/5/2013.87

A lesão aos cofres públicos ou a dilapidação do pratrimônio do Estado exige, para a sua configuração, o elemento subjetivo do dolo, eis que condutas culposas não são passíveis de enquadramento nesse ilícito.

Apesar disso, não se exige o dolo direto, ou seja, que o agente tenha desejado causar a lesão ou a dilapidação, contentando-se, lado outro, com o dolo indireto para sua configuração.

 

f) Recebimento indevido de vantagens (art. 250, inciso VI)

O recebimento indevido de vantagens está disposto no seguinte dispositivo:

Art. 250 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço ao funcionário que: [...]

VI - receber ou solicitar propinas, comissões, presentes ou vantagens de qualquer espécie.

Trata-se, aqui, de verdadeira mercancia da função pública. Diferencia-se do art. 217, inciso X88, já tratado neste Manual, uma vez que, nesta proibição, o agente recebe valores como um “agrado” pelo adequado cumprimento de seu dever legal (de bem exercer a atividade pública). Aqui, no entanto, o agente recebe vantagens dando algo em troca, vendendo a função para a satisfação de seu desejo egoístico. A presente transgressão em muito se assemelha com a concussão ou corrupção passiva, vez que, em ambos os casos, a vantagem advém em razão da função.

 

g) Atividade remunerada durante gozo de licença para tratamento de saúde (art. 256)

Art. 256 - Terá cassada a licença e será demitido do cargo o funcionário licenciado para tratamento de saúde que se dedicar a qualquer atividade remunerada.

A licença para tratamento de saúde - LTS é direito assegurado ao servidor público, tendo previsão expressa no art. 158, inciso I, e art. 168 e seguintes da Lei nº 869/1952, bem como as disposições constantes do Decreto nº 48.249, de 05 de agosto de 202189. A referida licença será concedida ao servidor, conforme o art. 2° do Decreto nº 48.249/2021, nas hipóteses de:

incapacidade temporária para as atribuições inerentes ao cargo decorrente de agravo à saúde ou impossibilidade de aproveitamento em outras funções, nos termos da legislação aplicável;
possibilidade de o trabalho acarretar progressão do agravo à saúde;
risco para terceiros.

Verificando a ocorrência de alguma hipótese acima, o servidor deve dar ciência à chefia e submeter-se à perícia médica, quando for o caso, tendo em sua posse documento comprobatório de que se encontra acometido por enfermidade. Caso seja concedida a licença, o servidor poderá ausentar-se do seu trabalho sem que haja descontos em seu vencimento, remuneração ou demais vantagens.

Contudo, nos termos do art. 169 da Lei nº 869/1952, o servidor, quando licenciado para tratamento de saúde, não poderá dedicar-se a qualquer atividade remunerada. Como se sabe, aquele que se encontra a serviço da Administração Pública submete-se a uma série de prerrogativas e sujeições inerentes ao regime jurídico administrativo. Este, entendido como o conjunto de princípios e normas de direito administrativo, deve nortear todas as atividades desenvolvidas pela Administração Pública.

A LTS, como qualquer direito, deve ser exercida com boa-fé, direcionada à sua real finalidade, qual seja, o afastamento do servidor para que ele tenha condições de recuperar sua saúde, evitando-se os prejuízos decorrentes de seu deslocamento diário ao serviço. O servidor não pode, portanto, utilizar-se desse direito para finalidade diversa daquela estabelecida pela lei, em virtude dos princípios da moralidade (boa-fé), da legalidade e da continuidade do serviço público.

Nesse contexto, de acordo com a Lei nº 869/1952, aquele que exerce atividade remunerada, quando em gozo de LTS, estaria ludibriando a Administração Pública. Isso porque, se o servidor possuía condições de saúde para exercer outra atividade, por qual motivo se licenciou do serviço público estadual?

Entende-se, assim, que o ato de concessão da LTS é nulo, por lhe faltar a finalidade e o motivo, um dos cinco elementos do ato administrativo (competência, finalidade, forma, motivo e objeto). A finalidade da LTS, assim como da prática de qualquer outro ato administrativo, é a busca do interesse público. In casu, a busca do interesse público está na manutenção da saúde do servidor para que esse possa, recuperado, prestar serviços ao público a contento.

Os motivos que ensejam a concessão são os efeitos acarretados pela enfermidade, que impossibilitam o servidor de prestar seu serviço ao público de forma satisfatória, sem colocar em risco sua saúde e, eventualmente, a de terceiros. Reconhecendo os vícios acima referidos, há que se reconhecer a nulidade do ato praticado, motivo pelo qual a licença concedida ao servidor é cassada, conforme prevê o art. 256 da Lei n° 869/1952.

Além disso, em virtude da declaração da nulidade do ato administrativo, o servidor deve ressarcir o erário pelo montante eventualmente recebido indevidamente. Ora, se o servidor encontra-se desacobertado de motivo que o impedia de trabalhar, não compareceu em serviço e recebeu pelo período, necessária se faz a restituição do valor integral, com a devida correção monetária, sob pena de enriquecimento sem causa, bem como dano ao erário.

Conforme dispõe o caput do art. 256, em regra, em se tratando da constatação do exercício de atividade remunerada durante a LTS, não cabe discricionariedade no ato da administração. A demissão do servidor seria, pois, ato vinculado, não havendo abertura para análise de circunstancial oportunidade e conveniência. Nesse sentido:

DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO NO GOZO DE LICENÇA MÉDICA. POSSIBILIDADE. COMPROVAÇÃO DA FALTA DISCIPLINAR. SEGURANÇA DENEGADA.
1. O fato de o servidor público estar em gozo de licença médica não impede a aplicação da penalidade de demissão. (MS 14.372/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/06/2011, Dje 30/08/2011)
2. Suficientemente demonstrada a falta funcional da impetrante no Processo Administrativo Disciplinar, não prospera a alegação de que nenhuma prova foi colhida para calcar a fundamentação para sua demissão.
3. Não há, outrossim, comprovação nos autos de que tenha a Comissão Disciplinar agido com imparcialidade ou perseguição política. Pelo contrário, não há qualquer resquício de discricionariedade administrativa na motivação da demissão de servidor que, comprovadamente, exerceu atividade remunerada enquanto em licença para tratamento de saúde, a teor do artigo 256 do Estatuto dos Funcionários Públicos de Minas Gerais. Trata-se de ato vinculado, como conseqüência da aplicação da lei, do respeito à ordem jurídica e do interesse público.
4. As substituições dos membros da comissão processante foram devidamente publicadas no órgão oficial, dependendo a alegação de nulidade (por ausência de comunicação pessoal) da demonstração de prejuízo à defesa da impetrante, em homenagem ao princípio pas de nullité sans grief, o que não correu no caso autos.
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no RMS 13.855/MG, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA - DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 21/02/2013, Dje 14/03/2013)

Nesse ponto, contudo, há que se fazer uma observação. Para a configuração do ilícito previsto no art. 256, passível de punição com pena de demissão, deve-se atentar para o fato de que nem toda licença para tratamento de saúde atinge, obrigatoriamente, todas as atividades que uma pessoa pode desempenhar. Nesse sentido:

EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. RECURSOS VOLUNTÁRIOS. PRELIMINAR DE OFÍCIO. NÃO CONHECIMENTO DE PARTE DO PRIMEIRO RECURSO. ARTIGO 514, II, DO CPC. DESCUMPRIMENTO. PRELIMINAR DE OFÍCIO. NÃO CONHECIMENTO DOS AGRAVOS RETIDOS. ARTIGO 523, CAPUT, DO CPC. INOBSERVÂNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA. PROFESSOR ESTADUAL. DEMISSÃO. EXERCÍCIO DAS ATIVIDADES DO CARGO PÚBLICO MUNICIPAL DURANTE A LICENÇA-SAÚDE DO CARGO PÚBLICO ESTADUAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADE. REINTEGRAÇÃO AO CARGO PÚBLICO. VIABILIDADE. DEMISSÃO. ARTIGOS 169 E 256, AMBOS DA LEI ESTADUAL Nº 869, DE 1952. NÃO CABIMENTO. PAGAMENTO DA REMUNERAÇÃO DO PERÍODO. DIREITO.
I. Se parte das razões recursais não revela a impugnação do ato sentencial, mas, apenas, a repetição dos argumentos adotados na inicial, o recurso de apelação deve ser conhecido parcialmente. Necessária observância ao artigo 514, II, do CPC.
II. Não se conhece de agravo retido quando o agravante deixa de formular requerimento expresso nos moldes do artigo 523, caput, do CPC.
III. O exercício das atividades relacionadas ao cargo público municipal, ou outra atividade remunerada, durante o período de licença-saúde do cargo público estadual é insuficiente para atrair a aplicação do disposto nos artigos 169 e 256, ambos do Estatuto dos Servidores Públicos Estaduais, porque não existiu comprovação mínima, no PAD, de que, diante da doença do autor, à época das licenças-saúde, o exercício de outras atividades remuneradas estaria vedado.
IV. A ausência de motivação no ato de demissão do servidor público estadual efetivo, no cargo de Professor, revela a ilegalidade do ato e culmina na declaração da sua nulidade, para todos os efeitos jurídicos. Viável, ainda, o direito do servidor público à recondução e à percepção das remunerações relativas não percebidas, desde a data do ato de demissão até a data da reintegração.
V. São assegurados ao servidor público reintegrado todos os direitos que lhe foram retirados, como consequência lógica da injusta e ilegal demissão, operando efeitos ex tunc.
(TJMG - Ap Cível/Reex Necessário 1.0024.10.244275-3/003, Relator(a): Des.(a)
Washington Ferreira , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/11/2012, publicação da súmula em 23/11/2012) (grifo nosso)

No caso julgado no acordão acima, apurou-se que o servidor, embora não estivesse incapacitado de forma permanente para o exercício de atividade laborativa, não tinha condições de exercer as funções do cargo de Professor. O Estado de Minas Gerais poderia remanejá-lo, mas assim não o fez”90.

Assim, em se tratando de LTS por incapacidade laborativa parcial, que não prejudica toda a capacidade laboral do servidor, é possível a realização de atividade remunerada sem ensejar sanção expulsória. Nesse caso, deve-se buscar a readaptação, prevista no art. 81, da Lei nº 896/195291, por meio da qual o servidor passa a desempenhar função compatível com seu estado físico ou suas condições de saúde.

Restando reconhecido que o servidor apenas não pode realizar determinada atividade específica, como, por exemplo, ministrar aulas em razão de problemas vocais graves, deve-se buscar a readaptação para uma função compatível com sua condição. Observa-se que, ainda que o servidor possua outro cargo no Estado, ou mesmo em ente diverso (Município, por exemplo), é possível que, em razão da inexistência de identidade entre as funções, ou de peculiaridades de uma em relação a outra, seja possível o pleno exercício de uma das funções sem ensejar a penalização em questão.

Salienta-se ainda que não basta a apresentação de atestado médico subscrito por médico particular para que seja reconhecida a enfermidade. Para que isso ocorra de forma regular, é necessária a submissão à junta médica oficial do Estado.


74 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em: < LIM-16-12-1830 >
75 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível:AC 10395080192838001.
76 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível:AC 10395080192838001.
77 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Recurso Administrativo:10000150729283001 MG.
78 TJ-MG: 104110401117740011 MG 1.0411.04.011177-4/001(1) DJE: 30/3/2010
79 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal parte especial (arts. 121 ao 361). 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016. P. 768.
80 HC 70814, julgado em 01/03/1994 – Neste caso, o STF admitiu a interceptação de correspondência direcionada a um preso, ponderando pela prevalência da salvaguarda de práticas ilícitas em relação ao sigilo epistolar.
81 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 771.
82 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa/ Rogério Greco. - 11. ed. Niterói, RJ: lmpetus, 2015. p. 261.
83 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. APR 10693140118094001.
84 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANDO. Recurso Sentido Estrito: 35980240390 ES 035980240390 – DJE: 6/12/2005.
85 COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo. Método, 2009. P. 474- 475
86 COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo. Método, 2009. p. 476.
87 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo n° 523. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/.
88 Art. 217, X - receber propinas, comissões, presentes e vantagens de qualquer espécie em razão das atribuições;
89 48.249, de 05 de agosto de 2021 - Dispõe sobre a concessão de licença para tratamento de saúde para servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo no âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo.
90 TJMG - Ap Cível/Reex Necessário 1.0024.10.244275-3/003, Relator(a): Des.(a) Washington Ferreira , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/11/2012, publicação da súmula em 23/11/2012.
91 “Art. 81 - Dar-se-á readaptação: a) nos casos de perda da capacidade funcional decorrente da modificação do estado físico ou das condições de saúde do funcionário, que não justifiquem a aposentadoria; b) nos casos de desajustamento funcional no exercício das atribuições do cargo isolado de que for titular o funcionário ou da carreira a que pertencer.”