2.6.2.1. ILÍCITOS PASSÍVEIS DE DEMISSÃO (ART. 249)
Os ilícitos passíveis de demissão estão previstos no art. 249 do Estatuto do Servidor, como será apresentado a seguir.
a) Acúmulo ilícito de cargos (art. 249, inciso I)
Art. 249 - A pena de demissão será aplicada ao servidor que:
I - acumular, ilegalmente, cargos, funções ou cargos com funções;
A acumulação de cargos é vedada pela Constituição Federal, que, em seu próprio texto, expõe as exceções, isto é, os casos em que a acumulação é admitida pela ordem jurídica62:
Art. 37. [...] XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
Carvalho Filho destaca a dificuldade em se determinar a natureza do cargo, se técnico ou científico:
[...] cargos técnicos são os que indicam a aquisição de conhecimentos técnicos e práticos necessários ao exercício das respectivas funções. Já os cargos científicos dependem de conhecimentos específicos sobre determinado ramo científico. Normalmente, tal gama de conhecimento é obtida em nível superior; essa exigência, porém, nem sempre está presente, sobretudo para os cargos técnicos. Por outro lado, não basta que a denominação do cargo contenha o termo ‘técnico’: o que importa é que suas funções, por serem específicas, se diferenciem das meramente burocráticas e rotineiras. Seja como for, nem sempre será fácil atribuir tais qualificações de modo exato. As soluções adequadas normalmente são adotadas no exame da situação concreta.63
O autor explica que profissionais de saúde são todos aqueles “que exercem atividade técnica diretamente ligada ao serviço de saúde, como médicos, odontólogos, enfermeiros, etc.”64
Por se tratar de questão constitucional, a acumulação ilícita de cargos não se convalida pelo decurso do tempo, razão pela qual não há que se falar, em regra, em segurança jurídica, teoria dos atos consumados ou estabilização. Nesse sentido:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO ORDINÁRIA - SERVIDORES PÚBLICOS CONTRATADOS - EFETIVAÇÃO PELA LEI COMPLEMENTAR N° 100 /2007 - INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF - ADI N° 4.876/DF - ESTABILIDADE - DESCABIMENTO - DECADÊNCIA - INOCORRÊNCIA - CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA PARA MANUTENÇÃO NO CARGO - IMPOSSIBILIDADE - REQUISITOS NÃO ATENDIDOS - DECISÃO MANTIDA.
[...]
Os atos inconstitucionais, como a efetivação dos servidores contratados, são nulos desde a origem, não havendo que se falar na sua convalidação pelo decurso do tempo.65
Além do mais, ressalta-se que igualmente é vedada a acumulação de proventos com remuneração, quando os cargos não forem acumuláveis, nos termos já citados:
Art. 37. [...] § 10. É vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.
Ainda que materialmente acumuláveis, para se falar em licitude deve haver a compatibilidade de horário no exercício dos cargos. Sobre tal compatibilidade, o STJ já se posicionou pela limitação de 60 (sessenta) horas semanais, vez que, caso superior a tal quantitativo, poderia prejudicar o necessário descanso e a qualidade do serviço público prestado, ínsito ao princípio da eficiência:
RECURSO ESPECIAL N° 1.565.429 - SE (2015/0160111-8) ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROFESSORA DA UFS. PRETENDIDA ACUMULAÇÃO COM O CARGO DE ADMINISTRADORA NA DPU. JORNADA SEMANAL SUPERIOR A 60 (SESSENTA HORAS). AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
1. Cuida-se, na origem, de Mandado de Segurança impetrado pela ora recorrida, com o fim de garantir seu alegado direito de acumular os cargos atualmente ocupados de Administradora na Defensoria Pública da União e de Professora Substituta na Universidade Federal de Sergipe, conforme aprovação em concurso público de provas e títulos.
2. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a impossibilidade de cumulação de cargos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho superar 60 horas semanais. Isso porque, apesar de a Constituição Federal permitir a acumulação de dois cargos públicos privativos dos profissionais de saúde, deve haver, além da compatibilidade de horários, observância ao princípio constitucional da eficiência, o que significa que o servidor deve gozar de boas condições físicas e mentais para exercer suas atribuições.
3. Recurso Especial provido.
Ocorre que a jurisprudência não é tão pacífica quanto a isso, uma vez que a Constituição não apresentou tal limitação, tratando apenas de “compatibilidade de horários”, que é aferível no caso concreto. Dessa forma, o ideal é apreciar a concretude fática de cada caso e, assim, avaliar a compatibilidade entre os cargos, realizando uma avaliação do cumprimento adequado e integral da carga horária relativa a ambos os cargos.
O acúmulo de cargos se filia à cláusula rebus sic standibus, ou seja, “da maneira pela qual as coisas se encontram”. Isso quer dizer que, enquanto o servidor ocupar cargos não passíveis de acumulação, o ilícito se configura; caso o servidor deixe um desses cargos, o ilícito desaparece.
Tal conclusão é extraída da inteligência literal do art. 18, parágrafo único do Decreto Estadual nº 45.841/2011, que dispõe sobre o processo de acumulação de cargos, funções ou empregos públicos no âmbito da Administração Pública Estadual:
Art. 17. Esgotados os prazos previstos no § 1° do art.15, sem que tenha ocorrido a opção ou a interposição de recurso, caberá à unidade de recursos humanos ou à unidade equivalente do órgão de sua lotação remeter o processo à Subcontroladoria de Correição Administrativa – SCA, da Controladoria-Geral do Estado – CGE, que adotará as medidas legais cabíveis.
Art. 18. O servidor, ao manifestar a opção, deverá comprovar no processo de acúmulo seu desligamento de um dos cargos, empregos ou funções públicas em até dez dias.
Parágrafo único. Entende-se por opção a escolha do servidor público em permanecer em um dos cargos, funções ou empregos públicos que acumula, solicitando exoneração, dispensa ou rescisão contratual do outro que ocupar.
Dessa forma, não há que se falar em acúmulo de cargos pretéritos, sendo a contemporaneidade requisito essencial de sua existência. Em outras palavras, o acúmulo somente se configura enquanto o servidor está, de fato, ocupando dois ou mais cargos não acumuláveis. Nesse ponto, observamos que a AGU aprovou a Orientação Normativa CNU/CGU/AGU 5/2017, segundo a qual a compatibilidade de horários prevista na Constituição deve ser analisada caso a caso pela Administração Pública66.
Mais recentemente67, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou válida a acumulação de dois cargos públicos com carga horária superior a sessenta horas semanais em um caso especifico de profissional da saúde. Com efeito, em sede do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, a Suprema Corte reformou a decisão do STJ que negou o pedido de anulação do ato de demissão de um servidor, sustentando que a Constituição Federal, ao permitir o acúmulo de cargos, não fez restrição à carga horária ou à necessidade de preenchimento de requisitos, como deslocamento, repouso ou alimentação. Segundo o relator, Ministro Gilmar Mendes, a regulamentação administrativa que impõe limitação de carga horária semanal para permitir o acúmulo é inválida.
Verifica-se, então, que o STF vem firmando o entendimento no sentido de possibilidade de acumulação de cargos de profissionais da saúde, nos termos do art. 37, XVI, da Constituição da República de 1988, desde que haja compatibilidade de horário, independentemente até mesmo de limitação da carga horária a 60 horas semanais68", sendo este o entendimento a ser adotado, conforme Tema 1.081:
As hipóteses excepcionais autorizadoras de acumulação de cargos públicos previstas na Constituição Federal sujeitam-se, unicamente, a existência de compatibilidade de horários, verificada no caso concreto, ainda que haja norma infraconstitucional que limite a jornada semanal. (STF. Plenário. ARE 1246685 RG, Relator(a): Min. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/03/2020, Tema 1081 Repercussão Geral).
b) Abandono de cargo (art. 249, inciso I)
Art. 249 - A pena de demissão será aplicada ao servidor que: [...]
II - incorrer em abandono de cargo ou função pública pelo não comparecimento ao serviço sem causa justificada por mais de trinta dias consecutivos ou mais de noventa dias não consecutivos em um ano;
O ilícito de abandono de cargo é composto, necessariamente, por dois elementos, um de ordem objetiva e outro de ordem subjetiva. O elemento objetivo consiste nas ausências do servidor ao serviço, na quantidade especificada na lei. O elemento subjetivo corresponde ao animus abandonandi, isto é, o dolo, a intenção, a vontade consciente de abandonar o cargo.
Há duas espécies de abandono de cargo: o abandono de cargo propriamente dito e a inassiduidade habitual, diferenciando-se em razão do elemento objetivo. O abandono de cargo propriamente dito exige ausências integrais, injustificadas e consecutivas em quantitativo superior a 30 (trinta) dias, ao passo que a inassiduidade habitual se consuma com mais de 90 (noventa) faltas integrais, injustificadas e intercaladas no período de um ano.
Quanto ao elemento subjetivo, ressalta-se que a vontade de quem abandona é extraída da realidade fática apresentada, não podendo ser comprovada por meio de declaração do servidornesse sentido. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais entende que é inadmissível que o servidor se mostre dolosamente faltoso, se ausentando de maneira consciente e, após a configuração do abandono de cargo, busque de maneira intempestiva a solução de sua situação junto à Administração Pública, para tentar se furtar da pena:
APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO ADMINISTRATIVO - DEMISSÃO POR ABANDONO DE CARGO - ANIMUS ABANDONANDI CONFIGURADO - INEXISTÊNCIA DE BOA-FÉ DO SERVIDOR - POSTURA NEGLIGENTE PERANTE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECURSO NÃO PROVIDO.
O STJ já consolidou a tese de que a demissão de servidor público estável e efetivo, por abandono do cargo, apurado em processo administrativo disciplinar, depende de comprovação do elemento subjetivo: animus abandonandi. Havendo posição desidiosa do servidor público, que se ausenta de maneira deliberada do serviço público e busca de maneira retardatária a solução de seus conflitos com a Administração Municipal, o animus abandonandi encontra-se configurado, havendo ensejo para demissão. TJ-MG - Apelação Cível: AC 10461080491149001 MG – DJE: 19/2/2014 (grifo nosso).
Quanto à contagem das faltas, a Instrução de Serviço CGE/SCA nº 04/2014, em seu art. 7º, dispõe que se consideram apenas os dias em que houver expediente na unidade de exercício do servidor:
Art. 7º. Para os fins de contagem de faltas, consideram-se apenas os dias em que houver expediente na unidade de exercício do servidor.
No mesmo sentido, o Catálogo de Orientações Básicas Relativas à Administração de Pessoal da SEPLAG menciona dias úteis:
O ilícito administrativo de abandono de cargo caracteriza-se pelo fato de o servidor não comparecer ao serviço, sem causa justificada, por mais de trinta dias úteis consecutivos ou mais de noventa, intercaladamente, em um ano69.
Nesse contexto, conclui-se que a contagem de faltas deve ocorrer exclusivamente nos dias em que o servidor público estava efetivamente escalado para cumprir sua jornada de trabalho, ou seja, nos dias úteis, nos termos do artigo 7° da Instrução de Serviço CGE/SCA n° 04/2014.
Essa interpretação é sustentada pela lógica de que a obrigatoriedade de presença do servidorestá vinculada ao seu calendário de trabalho, o qual, na maioria dos casos, restringe-se aos dias úteis, conforme estabelecido em regulamentos internos e disposições legais aplicáveis. Dessa forma, a ausência em dias não previstos na escala de serviço, como fins de semana ou feriados, não deve ser contabilizada como falta, para fins de abandono de cargo, uma vez que não há previsão de jornada nesse período.
No que se refere aos plantonistas, a contagem de faltas deverá observar a exceção prevista na Instrução de Serviço CGE/SCA n° 04/2014, que inclui dias de folga, feriado, ponto facultativo e finais de semana:
Art. 2º. Para os efeitos desta instrução de serviço, considera-se:
IV - servidor plantonista: aquele que trabalha em dias alternados durante a semana, com previsões de folgas subseqüentes.
(...)
Art. 7º. Para os fins de contagem de faltas, consideram-se apenas os dias em que houver expediente na unidade de exercício do servidor.
Parágrafo único. A regra deste artigo não se aplica ao servidor plantonista, devendo-se considerar também como faltas, além dos dias faltosos, os dias de folgas, os feriados, pontos facultativos, sábados e domingos subsequentes aos plantões dos quais tenha se ausentado. (g.n.)
A despeito de haver mencionado posicionamento no âmbito estadual, há entendimento jurisprudencial no sentido de a contagem dos dias se dar de forma contínua, incluindo finais de semana, feriados e pontos facultativos, mesmo quando não se tratar de plantonista. Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO. ABANDONO DE CARGO. ART. 138 DA LEI N. 8.112/90. AUSÊNCIA POR MAIS DE 30 DIAS CONSECUTIVOS. ANIMUS ABANDONANDI CONFIGURADO.
1. Mandado de segurança contra ato do Sr. Ministro de Estado da Fazenda, consubstanciado na edição da Portaria n. 448, de 9/8/2010, a qual determinou a demissão do impetrante do cargo de Auditor da Receita Federal por abandono de cargo, tendo em vista sua ausência no serviço no período de 8/8/2008 a 30/9/2008.
2. A Lei n. 8.112/90 dispõe em seu artigo 138 que a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos configura abandono de cargo, para o que prevê a pena de demissão (art. 132, II). Da mencionada transcrição, verifica-se que o dispositivo legal ao conceituar o abandono de cargo faz referência ao elemento objetivo consistente na ausência do servidor por mais de 30 (trinta) dias consecutivos, bem como ao elemento subjetivo, consubstanciado na intenção do servidor de se ausentar do serviço. Precedentes: MS 12.424/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Sexta Turma, DJe 11/11/2009; EDcl no MS 11.955/DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), Terceira Seção, DJe 2/2/2009, MS 10.150/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, DJ 6/3/2006.
3. No caso dos autos, não há dúvidas que o impetrante faltou ao serviço por mais de 30 (trinta dias) consecutivos, nos quais se inclui fins de semana, feriados e dias de ponto facultativo. Ademais, mesmo descontando os dias de férias gozadas (10/9/2008 a 19/9/2008), verifica-se que no período anterior a elas (8/8/2008 a 9/9/2008) o impetrante se ausentou por 33 (trinta e três) dias consecutivos, o que por si só caracteriza o elemento objetivo.
4. Quanto ao elemento subjetivo, da análise dos autos, verifica-se o ânimo específico do impetrante de abandonar o cargo, tendo em vista a ausência de justificativas plausíveis em sua defesa. Inicialmente destaca-se que a concessão de licença não remunerada para tratar de interesse particular é uma faculdade da Administração, a qual poderá, a seu alvedrio, deferi-la ou não, segundo o que for mais conveniente, à época, para o serviço público (art. 91 da Lei n. 8.112/90).
5. No mesmo sentido, ao manifestar posteriormente pela opção de exoneração, o servidor também deveria aguardar no exercício de suas funções o desenrolar burocrático próprio para análise do pleito, bem como a decisão final da Administração, autorizativa ou não, o que no caso certamente não seria concessivo, haja vista o conhecimento de anterior instauração de outro PAD contra sua pessoa visando apurar eventual disparidade entre os bens de sua propriedade e a renda que auferia como servidor público (art. 172 da Lei n. 8.112/90).
6. Com base nisso, tem-se que o abandono do cargo imediatamente após o protocolo do pedido de licença, tal como ocorreu na espécie, demonstra o alto grau de desídia do servidor frente a suas obrigações funcionais, o qual sobrepôs seu interesse particular ao interesse da administração de garantir a continuidade da prestação do serviço público até que se ultimasse a análise do pedido, optando deliberadamente, por não comparecer ao serviço no ato do pedido de afastamento formulado em 8/8/2008 até 30/9/2008.
7. Segurança denegada. (MS 15903 / DF, 1ª Seção, 11/04/2012).
Corroborando com tal entendimento, a CGU assim se manifestou:
Formulação Dasp nº 116. Faltas sucessivas. Na hipótese de faltas sucessivas ao serviço, contam-se, também, como tais, os sábados, domingos, feriados e dias de ponto facultativo intercalados.
Além destes, há diversos outros fundamentos para a contagem das faltas em dias corridos, o que poderá, em algum momento, repercutir no posicionamento firmado pela Instrução de Serviço CGE/SCA nº 04/2014.
Importante ressaltar que o abandono de cargo possui um pressuposto procedimental, consistente no prévio preenchimento do Anexo I, da Resolução CGE n° 21/2014, que faculta ao servidor requerer sua exoneração antes da deflagração da persecução administrativa, extinguindo, assim, a punibilidade do servidor faltoso. A seguir, reproduz-se o Anexo I.
ANEXO 1
DECLARAÇÃO DE ABANDONO DE CARGO O servidor [NOME COMPLETO DO SERVIDOR], [MASP], [CARGO/FUNÇÃO], em atendimento à intimação recebida nos termos do Art. 2º da Resolução CGE Nº 021/2014, comparece perante esta [NOME DA DIRETORIA DE RECURSOS HUMANOS OU UNIDADE EQUIVALENTE RESPONSÁVEL], diante da situação de:
[] Mais de 30 dias consecutivos de faltas injustificadas. [] Mais de 90 dias não consecutivos de faltas injustificadas. Declara que: |
O espelho de frequência, decerto, é prova de distinta relevância para este ilícito. No entanto, não é a única forma de se provar o abandono, pois a falsificação de tal controle pode ser exatamente o meio para se perpetrar a irregularidade.
Ressalta-se que as ausências ocasionadas por eventual prisão do servidor não são consideradas para o abandono de cargo, em razão da ausência da voluntariedade caracterizadora do elemento subjetivo do tipo. Aliás, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já considerou que a fuga de servidor para evitar prisão afastaria o abandono por inexistir o elemento anímico do servidor:
E M E N T A
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO. ABANDONO DE CARGO. SERVIDOR FORAGIDO. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA. AUSÊNCIA DO ANIMUS ABANDONANDI. REINTEGRAÇÃO AO CARGO CONCEDIDA. PAGAMENTO DE VALORES PRETÉRITOS A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DO ATO DE DEMISSÃO. DANOS MORAIS INCABÍVEIS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
I - É pacífico o entendimento na jurisprudência de que, para ficar caracterizado o abandono de cargo que dê ensejo à demissão de servidor público, é necessário que sua ausência seja, de fato, intencional, como prevê o art. 138 da Lei n° 8.112/90, devendo, assim, ficar caracterizado o animus abandonandi do servidor, que é a intenção deliberada de abandonar o cargo. Precedentes do STJ e deste Tribunal.
II - Já decidiu o STJ que o elemento subjetivo que caracteriza o animus abandonandi terá de ser apreciado com cautela, pois é necessário que haja, quanto ao agente, motivo de força maior ou de receio justificado de perda de um bem mais precioso, como a liberdade, por exemplo, na hipótese dos autos, ou seja, o temor de ser preso e a fuga do distrito da culpa não se confundem com a intenção de abandonar o cargo público ou a família numa extensão maior, embora não escuse a reação penal (MS 21.645/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ª Seção, DJe 30/09/2015).
III - No caso dos autos, não configurou abandono do cargo de Auditor-Fiscal da Previdência Social a ausência do autor ao serviço pelo tempo em que se encontrou foragido, em virtude de ter sido decretada sua prisão preventiva, a qual foi revogada, por sua desnecessidade, pelo Superior Tribunal de Justiça no HC 42.958/PA. (TRF 1 – Apelação Civil C 00078007320084013900 0007800 - 73.2008.4.01.3900)
c) Aplicação indevida de recursos públicos (art. 249, inciso III)
Art. 249 - A pena de demissão será aplicada ao servidor que: [...]
III- aplicar indevidamente dinheiros públicos;
Similar disposição é trazida no Código Penal, no art. 315, que aponta como crime contra a Administração Pública “dar às verbas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei”. É sabido que a prática de conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública é punível com demissão a bem do serviço público, como se verá adiante. No entanto, o presente ilícito teve um tratamento diferenciado pelo legislador, que o sujeita expressamente à pena de demissão, sem a adjetivação “a bem do serviço público”.
Isso se dá, porque, diferentemente dos demais crimes contra a Administração Pública, a conduta do servidor se inclina ao interesse público, não buscando a satisfação do interesse próprio. Como bem explica Rogério Sanches, tal infração70:
visa impedir o emprego tumultuado, irracional e arbitrário de verbas, rendas e respectivas aplicações pelo Administrador Público, sem a qual haveria verdadeira anarquia nas finanças públicas. Pune-se,em suma, o emprego irregular de fundos públicos (verbas e rendas), contrariando a destinação prevista em lei. A palavra "lei" não comporta interpretação extensiva, excluindo-se, portanto, os decretos e quaisquer atos administrativos.
É claro que o caso concreto pode apresentar circunstâncias que afastam o ilícito, podendo indicar, por exemplo, eventual inexigibilidade de conduta diversa. É o caso da Diretora Escolar que, na iminência da queda de um dos prédios da escola, utiliza, excepcionalmente, valores destinados à aquisição de materiais de escritório para realizar obras emergenciais e evitar danos maiores. Não se vislumbra, nessa hipótese, uso arbitrário e tumultuado de verbas públicas, mas, sim, medida excepcional que se justifica à luz das circunstâncias do caso.
d) Adocacia administrativa (art. 249, inciso IV)
Art. 249 - A pena de demissão será aplicada ao servidor que: [...]
IV - exercer a advocacia administrativa;
Assim como a aplicação irregular de verbas públicas (art. 249, inciso III), a advocacia administrativa também é conduta passível de capitulação como crime contra a Administração Pública (art. 321 do Código Penal), mas recebeu um tratamento menos rigoroso do que as demais condutas dessa natureza, sujeitando o infrator à pena de demissão e não à demissão a bem do serviço público. O art. 321 do Código Penal apresenta o conceito de advocacia administrativa:
Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário.
O tipo subjetivo que compõe o ilícito consiste no dolo de patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração Pública, sendo tal elemento indispensável à formação do ilícito. De acordo com Nucci, advocacia administrativa é:
Patrocinar (proteger, beneficiar ou defender), direta ou indiretamente, interesse privado (é qualquer vantagem, ganho ou meta a ser atingida pelo particular). Esse interesse deve confrontar-se com o interesse público, isto é, aquele que é inerente à administração pública. Não significa, porém, que o interesse privado – para a caracterização do crime – há de ser ilícito ou injusto perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário (é o prestígio junto aos colegas ou a facilidade de acesso às informações ou à troca de favores, investindo contra o interesse maior da administração de ser imparcial e isenta nas suas decisões e na sua atuação). O termo utilizado na rubrica (“advocacia”) pode dar a entender tratar-se de um tipo penal voltado somente a advogados, o que não corresponde à realidade, pois está no sentido de “promoção de defesa” ou “patrocínio”. Acrescente-se, ainda, que o patrocínio não exige, em contrapartida, a obtenção de qualquer ganho ou vantagem econômica. Pode significar para o agente um simples favor, o que, por si só, é fato típico.71
Percebe-se que a advocacia administrativa é, basicamente, defender ou patrocinar interesse privado, lícito ou ilícito, de forma onerosa ou não, em detrimento do interesse público. Como exemplo, cita-se a hipótese do servidor que, valendo-se de sua condição e facilidades, ou admiração propiciada pelo cargo, pede para dar preferência ao processo de aposentadoria de sua irmã.
e) Desempenho funcional insatisfatório (art. 249, inciso V)
Art. 249 - A pena de demissão será aplicada ao servidor que: [...]
V - receber em avaliação periódica de desempenho:
a) dois conceitos sucessivos de desempenho insatisfatório;
b) três conceitos interpolados de desempenho insatisfatório em cinco avaliações consecutivas; ou
c) quatro conceitos interpolados de desempenho insatisfatório em dez avaliações consecutivas.
Parágrafo único. Receberá conceito de desempenho insatisfatório o servidor cuja avaliação total, considerados todos os critérios de julgamento aplicáveis em cada caso, seja inferior a 50% (cinquenta por cento) da pontuação máxima admitida.
O fundamento da presente transgressão disciplinar é a própria Constituição Federal, que estabelece que o servidor estável perderá o cargo mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho:
Art. 41 [...]
§ 1° O servidor público estável só perderá o cargo:
[...]
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
O princípio constitucional ingressante em nossa ordem jurídica por meio da Emenda Constitucional n° 19/1998 estabelece os instrumentos de aferição do desempenho do servidor, aptos a romper, se for o caso, o vínculo deste com a Administração Pública. É o caso da avaliação de desempenho. A avaliação periódica de desempenho não se confunde com a avaliação especial de desempenho, condicionante para a aquisição da estabilidade e prevista no art. 41, §4°, da Constituição Federal:
§ 4° Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.
Aliás, ressalta-se que o servidor público em estágio probatório pode ser exonerado ou expulso, a depender da causa do desligamento. A primeira possibilidade corresponde à reprovação em estágio probatório. Nesse caso, o ato a ser praticado pela Administração pública é a exoneração. O ato se dará sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, em um processo administrativo com rito próprio, mais simples do que o PAD, vez que tal ato não possui natureza sancionatória, mas de mera adequação ao interesse público.
A segunda situação decorre do cometimento de uma irregularidade pelo servidor não estável. Nesse caso, o ato a ser exarado pela Administração possui caráter sancionador (desde uma repreensão a uma demissão a bem do serviço público), e deverá ser aplicado após a conclusão de um processo administrativo disciplinar, resguardadas todas as garantias a ele inerentes. Nesse sentido, Antônio Carlos de Alencar Carvalho explica que:
Conquanto a reprovação em estágio probatório demande Processo Administrativo com ampla defesa e contraditório, não se tratará, como no caso de cometimento de falta passível de demissão, de feito de natureza disciplinar, punitiva, não sendo obrigatória a designação de colegiado processante e a obediência às fases e procedimentos próprios da Lei n° 8.112/90 [...]72
Além disso, a matéria já foi sumulada pelo STF, que assim expõe:
Súmula 20
É necessário processo administrativo com ampla defesa, para demissão de funcionário admitido por concurso.
Súmula 21
Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade.
O clamor por um procedimento formal de apuração insculpido na Súmula 21 do STF não está ligado à estabilidade, mas sim à efetividade do cargo. Tal diferenciação se mostra clara no magistério de José dos Santos Carvalho Filho:
Estabilidade, como vimos acima, é a garantia constitucional do servidor público estatutário de permanecer no serviço público, após o período de três anos de efetivo exercício. Efetividade nada mais é do que a situação jurídica que qualifica a titularização de cargos efetivos, para distinguir-se da que é relativa aos ocupantes do cargo em comissão. Se o servidor ocupa um cargo efetivo, tem efetividade, se ocupa cargo em comissão, não tem.73
Em conclusão, o processo disciplinar para apuração de faltas por servidor público não está atrelado ao fato de o servidor ser estável, mas ao fato de ser efetivo. Ou seja, a reprimenda
administrativa de natureza punitiva pelo cometimento de determinada irregularidade por um servidor público efetivo, ainda que em estágio probatório, deverá obrigatoriamente ser precedida de processo administrativo disciplinar, com a garantia dos preceitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Neste ponto, importante consignar que, a teor da LC nº 71/2003, a aplicação da pena de demissão caberá à autoridade máxima do órgão ou entidade, cabendo recurso com efeito suspensivo, no prazo de 15 (quinze) dias, ao Conselho de Administração de Pessoal (CAP).
64 CARVALHO, Antônio Carlos de Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. Belo Horizonte: Editora Forum, 2017. p. 712.
67 Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. RMS nº 34608 – DF, DJe 31/05/2019.
68 Parecer 16.098/2019 da Advocacia-Geral do Estado.