4.1.5.1. ACESSO AOS AUTOS DOS PROCEDIMENTOS INVESTIGATIVOS

As alterações introduzidas pela Lei n° 13.245/2016 e Lei nº 13.793/2019 no “Estatuto da Advocacia e da OAB” são de observância obrigatória na condução das investigações preliminares no âmbito da Administração Pública, posto que tratam, em particular, dos “direitos dos advogados” e, mais especificamente, sobre: acesso aos elementos documentados nos autos de investigações “de qualquer natureza”, assistência ao cliente investigado, apresentação de razões e quesitos, e responsabilização criminal e funcional do agente público que impedir o acesso com o intuito de prejudicar o exercício da defesa (art. 7° da Lei n° 8.906/1994). Nesse contexto, observa-se:

Art. 7° São direitos do advogado:
[...]
XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos;
[...]
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;
[...]
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos; [...]
§ 10. Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.
§ 11. No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.
§ 12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente.

Deve-se observar que o inciso XIV do art. 7º possibilita o acesso do advogado aos autos de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, podendo copiar peças e tomar apontamentos. Contudo, o parágrafo 10 do citado artigo dispõe que, para o exercício deste direito, o advogado deve apresentar procuração nos autos que estiverem sujeitos a sigilo – caso dos procedimentos investigativos conduzidos no âmbito do Poder Executivo Estadual.

Já o inciso XXI trata da assistência ao cliente investigado, acompanhamento de sua oitiva (se planejada pela comissão sindicante) e apresentação de razões e quesitos, caso seja de seu interesse, sob pena de nulidade absoluta do interrogatório e, por conseguinte, de todos os elementos probatórios dele decorrentes ou derivados.

Assim, o advogado devidamente constituído148 pelo agente público investigado, ou o próprio investigado (identificado na portaria de instauração ou identificável na denúncia ou representação), pode:

a) ter acesso aos autos da Sindicância (administrativa investigatória, patrimonial, de avaria ou desaparecimento de bens);
b) copiar peças dos autos e tomar apontamentos em meio físico ou digital;
c) comparecer à oitiva do seu cliente (a comissão deve intimar previamente o advogado constituído nos autos, para que, à sua escolha, se faça presente, sob pena de nulidade do interrogatório e de todos os elementos probatórios dele decorrentes ou derivados);
d) apresentar razões e quesitos no curso da apuração.

Cumpre ressaltar que a autoridade competente pode delimitar o acesso do advogado e do investigado às diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos no caso em que houver risco de comprometimento da eficiência, eficácia ou finalidade da investigação. Tal previsão legal, assim como a que trata da necessidade de apresentar instrumento de procuração nos procedimentos sigilosos, visam não só assegurar maior proteção ao investigado, como também à necessária efetividade dos instrumentos de investigação.

4. Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob o risco do comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. [...] Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício. [...] 5. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade dos investigados [...] não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais acusados, para impedir o acesso aos autos, importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito ao seu constituinte."149

A proibição de acesso ao investigado ou a seu advogado, o fornecimento incompleto dos elementos documentados ou a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo, com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sujeita o agente público à responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade. Assim dispõe a Lei nº 13.869/2019150:

Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Marcos Salles Teixeira ressalta três comandos limitantes da incidência da Lei de Abuso de Autoridade151:

De acordo com o § 1º do seu art. 1º, para que uma conduta cometida por agente público seja tipificada como crime de abuso de autoridade, é necessária a comprovação do ânimo subjetivo de parte do autor de dolo específico de prejudicar outrem ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou ainda de agir por satisfação pessoal. Some-se a fundamental ressalva estabelecida no § 2º do mesmo art. 1º, salvaguardando que a possibilidade (nada remota na aplicação do Direito) de divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura crime de abuso de autoridade, o que é absolutamente fundamental para que a Lei advinda para controle não se torne elemento de perseguição, intimidação ou inibição da ação estatal. E os seus arts. 7º e 8º consagram a aplicação, na processualística disciplinar, da sentença penal definitiva que negue a materialidade ou a autoria ou que tenha declarado o cometimento da conduta típica sob amparo de excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito).

Embora raro, um dos fundamentos invocados para acesso aos autos de sindicâncias administrativas investigatórias é o Enunciado 14 da Súmula Vinculante do STF, que diz:

É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Não há dúvida de que o enunciado da Súmula se refere expressamente a “procedimento investigatório realizado por órgão de polícia judiciária”, que não é outro senão o inquérito policial. Nestes termos, o STF já se pronunciou sobre a “inaplicabilidade da Súmula Vinculante 14 nos procedimentos de natureza cível ou administrativa”, como adiante se vê:

O Verbete 14 da Súmula Vinculante do STF [...] não alcança sindicância que objetiva elucidação de fatos sob o ângulo do cometimento de infração administrativa. Com base nessa orientação, a 1ª Turma negou provimento a agravo regimental em que se reiterava alegação de ofensa ao referido enunciado, ante a negativa de acesso a sindicância. (Rcl 10771 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento em 4.2.2014, DJe de 18.2.2014)
O agravante não trouxe novos elementos aptos a infirmar ou elidir a decisão agravada. Como já demonstrado, a Súmula Vinculante n. 14 é aplicada apenas a procedimentos administrativos de natureza penal, sendo incorreta sua observância naqueles de natureza cível.152

Tratando ainda do acesso aos autos dos procedimentos investigativos, cabe uma breve análise sobre o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, ressalvadas as informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, conforme consagrado no inciso XXXIII do art. 5° da Constituição Federal. Em 2011, o mencionado dispositivo constitucional passou a ser regulado pela Lei n° 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação - LAI), regulamentada, no âmbito do Poder Executivo Estadual, pelo Decreto n° 45.969/2012.

Em síntese, a LAI positivou a publicidade como preceito geral e o sigilo como exceção (art. 3°, I), definindo a informação sigilosa como “aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado” (art. 4°, III, art. 6°, III, Lei nº 12.527/2011). Em relação aos procedimentos sigilosos e de viés meramente investigativo – caso da sindicância investigatória, patrimonial e de avaria ou desaparecimento de bens –, temos que o art. 23 da Lei n° 12.527/2011 assim definiu:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: 

[...]
VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Não obstante existirem, na norma, parâmetros acerca do tratamento e classificação das informações, é de se notar que as expressões “passíveis de classificação” e “possam comprometer atividades” trazem-nos a ideia de que a efetiva caracterização da situação de potencial “comprometimento das atividades de investigação em andamento” deve ser definida pela própria Administração Pública, no âmbito de cada órgão e entidade.

É de se ressaltar que o caráter sigiloso das investigações visa não só resguardar a imagem da pessoa investigada, mas também a efetividade das atividades de investigação, a qual possui papel fundamental na prevenção e repressão de infrações administrativas.

Nesse contexto, a Controladoria-Geral do Estado editou a Súmula nº 2, de 19 de setembro de 2019, publicada no Diário do Executivo do dia 21 de setembro de 2019, com o seguinte enunciado: 

 Súmula CGE nº 2/2019

 ACESSO AOS AUTOS DE PROCESSOS E SINDICÂNCIAS EM CURSO

O acesso aos autos de Sindicâncias e Processos Administrativo Disciplinares em curso fica limitado ao sindicato/processado, seus procuradores constituídos, órgãos públicos e terceiros interessados que demostrem interesse próprio e legítimo.

 

Reafirma-se, portanto, o direito do investigado (ou advogado por ele constituído) acessar os autos dos procedimentos investigativos em andamento (em razão do art. 7° do Estatuto da OAB), não cabendo, porém, a disponibilização de documentos e informações neles contidas para pessoas não consideradas envolvidas nos fatos em apuração, sob pena de comprometimento da investigação em andamento.

Abre-se, ainda, a possibilidade de franquear o acesso a interessados, nos termos do art. 6º da Lei Estadual nº 14.184/2002, bem como aos Órgãos Estatais cujo conhecimento se faz necessário (Advocacia-Geral do Estado, Ministério Público, Poder Judiciário, Tribunal de Contas ou outro que comprove a pertinência de sua solicitação). Segue a ementa que fundamentou a edição da Súmula CGE nº 2/2019: 

Resolução CGE nº 15/2015. Lei nº 8.906/94 e suas alterações posteriores. Restrição de informações constantes em Sindicâncias e Processos Administrativos Disciplinares. Admissibilidade. Compatibilidade com a Constituição Federal de 1988. 1. A Resolução CGE nº 15/2015 deve ser lida sob a égide Constitucional e legal, adequando-se eventuais inconsistências à Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB), que regulamenta o acesso a autos de processos e investigações, findas ou em andamento. 2. Referida lei permite o sigilo, limitando o acesso a advogados com procuração, protegendo não só o interesse do Estado, mas, sobretudo, as informações pessoais constantes dos autos. 3. Durante a fase de apuração, deve vigorar a presunção relativa (iures tantum) de sigilo, haja vista a ausência de cognição exauriente acerca do objeto, e a presença de informações acerca da vida funcional do servidor, o que se presume sua possível exposição contraproducente perante seus colegas e o próprio órgão em que atua.

No caso de negativa, o requerente deve ser informado, no prazo legal, sobre as razões de fato ou de direito que impossibilitaram o acesso pretendido, bem como sobre a possibilidade de recurso, prazos e condições para sua interposição, com a indicação da autoridade competente para sua apreciação (art. 11, § 1°, II, e § 4°, da Lei n° 12.527/2011).


148 O advogado só poderá praticar os atos processuais em nome do investigado se fizer prova do mandato, por meio da procuração.
149 HC 88190, Relator Ministro Cezar Peluso, Segunda Turma, julgamento em 29.8.2006, DJ de 6.10.2006.
150 Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019: Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
151 TEIXEIRA, Marcos Salles. Anotações sobre Processo Administrativo Disciplinar. Escritório de Direitos Autorais-RJ/Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura. P. 416. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/46836 . Acesso em 10 dez. 2021.

152 STF. Rcl 8458 AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 26.6.2013, DJe de 19.9.2013.